sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Combate a fake news deve ser feito com cautela

O Globo

Ainda que bem-intencionada, ação da AGU precisa ser revertida para evitar abusos e censura

Ao erodir barreiras contra a propagação de fake news, a revolução digital apresentou um enorme desafio para sociedades democráticas. Discussões sobre liberdade de expressão e necessidade de proteger o Estado Democrático de Direito, que estavam adormecidas, voltaram com força. Nessa tendência, que é global, o Brasil teve papel de destaque. Após uma disputa acirrada, o resultado das eleições interrompeu um projeto de viés autoritário alavancado por fake news.

Nesta primeira semana do novo governo, não faltaram declarações e a criação de órgãos contra a propagação de desinformação tendo a defesa da democracia como mote. Mesmo que tudo seja feito de boa-fé, é preciso que a sociedade analise com objetividade e precaução essas iniciativas para que se evite a criação de estruturas que possam ser utilizadas para o cometimento de abusos e censuras, neste ou em qualquer futuro governo.

Causou particular preocupação o anúncio feito por Jorge Messias, chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), sobre o lançamento da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, que representaria a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas. Criada pela Constituição de 1988, a AGU já tinha a prerrogativa de defender os interesses da União em qualquer matéria, inclusive, é claro, quando tais interesses são violados pela divulgação de fake news — por isso o estranhamento.

Se, por exemplo, uma pessoa ou grupo divulgarem notícias sabidamente falsas sobre uma campanha de vacinação, que é uma atribuição do Estado, a AGU tem todas as condições de levar o caso à Justiça. Do ponto de vista jurídico, portanto, a nova procuradoria não faz sentido. Mas sua criação traz outros riscos. Uma de suas atribuições seria proteger a administração pública de ataques deliberados com mentiras.

A AGU é um órgão do Poder Executivo e, como tal, sujeito às influências políticas do governo da ocasião (e essa não é uma singularidade do Estado brasileiro). O risco da recém-criada procuradoria se transformar num “tribunal da verdade” nesse ambiente não é pequeno. Seria um órgão estatal a definir o que é uma campanha de fake news e o que é apenas uma opinião. É verdade que a AGU apenas ajuizaria ações, cabendo a palavra final ao Judiciário, mas nunca se deve subestimar o poder do Executivo. Um simples processo vindo da AGU é suficiente para intimidar e calar — o mero envolvimento da poderosa administração pública em alguns casos já provocaria esse efeito.

O envolvimento do Poder Executivo em atividades de controle da circulação de informações é típico de países autocráticos. Bem fez o Marco Civil da Internet ao não contemplar essa participação em nosso país. O novo governo faria melhor se apoiasse o Projeto de Lei 2.630/2020, conhecido por PL das Fake News e que propõe avanços, como a exigência de que as plataformas tenham políticas transparentes de moderação. Até sua aprovação, a definição de desinformação continuará vaga. As fake news são uma ameaça, mas o remédio contra elas pode se transformar em veneno.

É essencial desatar nós que travam conclusão de obra do metrô no Rio

O Globo

Paralisada desde 2015, construção da Estação Gávea, que já custou R$ 1 bilhão, traz riscos à vizinhança

É acertada a decisão do governador do Rio, Cláudio Castro, de priorizar a conclusão da Estação Gávea da Linha 4 do metrô (Ipanema-Barra). Em entrevista ao GLOBO, Castro disse que costura uma saída jurídica para retomar ainda neste semestre as obras paralisadas em 2015. Parte do pacote de mobilidade urbana para os Jogos Rio-2016, elas tiveram de ser interrompidas por falta de recursos quando o estado enfrentava grave crise financeira — foi a única das seis estações projetadas que não ficou pronta para o evento.

Há motivos de sobra para a retomada. O mais grave e urgente é a deterioração da obra, que põe em risco não só o que já foi executado, mas também a segurança das construções vizinhas, entre elas o campus da Pontifícia Universidade Católica (PUC). Em fins de 2017, a estrutura, cuja profundidade chega a 55 metros, foi inundada com 36 milhões de litros de água para garantir a estabilidade e evitar a corrosão dos materiais até que os trabalhos sejam reiniciados. Mas a estratégia era provisória, e o prazo de validade, de cinco anos, já expirou. Se não der continuidade às obras, o estado terá de fazer o reforço das estruturas, o que significaria gastar recursos (cerca de R$ 300 milhões) numa solução paliativa.

Concluir a estação custaria em torno de um décimo do valor total da obra (cerca de R$ 10 bilhões à época), a mais cara da aventura olímpica do Rio. Mas a questão não é só essa. Para cumprir o objetivo, Castro terá de desatar um nó complicado. Uma decisão da 3ª Vara de Fazenda Pública em ação do Ministério Público impede o estado de destinar recursos ao consórcio Rio Barra, responsável pela construção. Isso porque o MP identificou um sobrepreço de pelo menos R$ 400 milhões na Linha 4, tocada em meio aos desmandos dos governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, ambos condenados por corrupção.

Compete não só ao governador Cláudio Castro, mas também ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) resolver o impasse que impede a retomada das obras. Parece inegável que houve roubalheira na Linha 4 do metrô fluminense. Mas, do jeito que está, o buraco da Estação Gávea, onde já foi enterrado cerca de R$ 1 bilhão, não serve para nada, a não ser como mais um lamentável monumento à incúria. Estudos técnicos mostram que, com praticamente metade das obras já executada, o melhor custo-benefício é concluir a estação.

A Estação Gávea é crucial para melhorar a mobilidade dos trabalhadores na cidade. Quando pronta, deverá beneficiar 19 mil passageiros por dia, turbinando a subutilizada Linha 4.

Os desvios de dinheiro público nas obras faraônicas feitas para a Olimpíada do Rio devem ser punidos exemplarmente. Cabe aos órgãos de controle e à Justiça cobrar dos responsáveis pelo descalabro. Mas a punição não pode recair sobre o cidadão. É fundamental resolver os impasses que impedem a continuação da Estação Gávea. Caso contrário, a população será duplamente prejudicada: na corrupção que suga os já escassos recursos públicos e na privação de um transporte digno.

A chamada de Lula

Folha de S. Paulo

Presidente deve dissipar dúvidas da Esplanada e do país sobre rumos do governo

Inícios de governo não raro elevam a frequência de declarações divergentes, anúncios atabalhoados e medidas nebulosas por parte das novas autoridades. Tratando-se do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de seu afã em demarcar contrastes com o predecessor, o risco parece mais claro.

Assim o indica o agendamento de uma reunião ministerial para esta sexta-feira (6), antes mesmo de completada uma semana desde a posse do presidente. Dos 37 nomes do primeiro escalão, aliás, 16 só foram confirmados no apagar das luzes do ano passado.

Nesse grupo está a titular do Turismo, Daniela Carneiro, que responde pelo primeiro mal-estar político da administração. A Folha revelou que a deputada eleita e o marido, ambos da União Brasil fluminense, contaram em campanhas com o apoio de um ex-PM condenado e preso sob acusação de chefiar uma milícia no estado.

O Planalto descartou afastar a ministra, com o argumento razoável de que nada de mais grave pesa contra sua atuação. De todo modo é obviamente embaraçoso o elo, que inclui ainda outro encarcerado, com figuras de atividade criminosa associada ao bolsonarismo.

A maior presepada da equipe de Lula, no entanto, partiu de Carlos Lupi (PDT), outro da última leva de escolhidos e instalado na Previdência Social, recém-separada da pasta do Trabalho. De moto próprio, o pedetista aventurou-se a negar o déficit do INSS e a anunciar uma comissão destinada a reexaminar a reforma das aposentadorias.

Essa modalidade de negacionismo já deveria estar superada no debate nacional, mas a tese de Lupi mantém seu apelo à esquerda.

Já se torturaram números e se reviraram contabilidades, em especial nas administrações petistas do passado, para embelezar o balanço previdenciário. O que nenhum malabarismo aritmético pode esconder é que as despesas com benefícios, exorbitantes para os padrões emergentes, cresciam em ritmo insustentável até a reforma.

Menos mau que o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), tenha de certa forma desautorizado o colega, ao dizer que nenhuma proposta de revisão das regras está em elaboração no momento —o que não chega a ser uma negativa peremptória de tal intenção.

É provável que boa parte da Esplanada, assim como da sociedade brasileira, ainda não tenha clareza sobre os rumos do novo governo para além dos revogaços materiais e simbólicos desta primeira semana. Lula fará bem se começar a dissipar as dúvidas em sua primeira reunião com o gabinete.

Passo a passo

Folha de S. Paulo

Descriminalizar o aborto é difícil, mas garantir acesso legal ainda é necessário

A descriminalização do aborto é providência que deve ser tomada pelo Legislativo, mas cabe ao Executivo construir articulações para pautas de seu interesse. A configuração do ambiente político determinará a dificuldade da tarefa.

À Folha, a ministra das Mulheres, Maria Aparecida Gonçalves, disse que, "da forma como está sendo colocado hoje pelo Congresso, qualquer discussão sobre aborto vamos perder mais do que avançar".

A declaração é realista e se refere à composição da Câmara e do Senado, mais propensa a posições conservadoras sobre o tema, também expressivas na população.

Em dezembro do ano passado, deputados tentaram uma última cartada para proibir a interrupção da gravidez em qualquer situação, com o chamado "Estatuto do Nascituro", mas foram barrados por estratégia regimental da oposição.

Mesmo que a descriminalização seja debate difícil no presente contexto, porém, ainda há obstáculos a serem superados nos casos em que o procedimento é permitido.

Segundo o Código Penal, qualquer relação sexual com menores de 14 anos é estupro de vulnerável, e a gravidez nessa idade é considerada de risco por especialistas. Em 2021, contudo, das 1.556 internações relacionadas a abortos na faixa etária entre 10 e 14 anos, apenas 131 (8%) ocorreram por causas autorizadas: estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto.

Os outros 1.425 casos (92%) se deram em razão de abortos espontâneos ou induzidos fora dos hospitais. Ademais foram realizados 1.502 procedimentos de curetagem ou aspiração intrauterina, que são mais associados a tentativas malsucedidas de interrupção da gestação do que a casos naturais.

O número desproporcional revela problemas como a falta de conhecimento da legislação pelas famílias das vítimas, preconceito contra a prática e até atuação do Executivo e do Judiciário para dificultar o acesso ao procedimento.

O caso da juíza que tentou convencer uma criança de 11 anos a continuar a gravidez gerou revolta no ano passado. Em seguida, o Mistério da Saúde lançou cartilha afirmando que "todo abordo é crime" e que as pesquisas que apontam o risco da gestação de jovens com menos de 15 anos são inconsistentes —negando de forma acintosa o que diz a lei e a ciência.

O anúncio de que o documento será revogado pela atual gestão da pasta é, por óbvio, bem-vindo. Ao ministério da Mulher cabe promover políticas públicas que agilizem e facilitem o acesso ao direito do aborto legal —principalmente para a população mais vulnerável.

 Delírios no primeiro escalão

O Estado de S. Paulo.

Quando um ministro prega reversão da reforma da Previdência, nota-se que o retrocesso está à espreita. Mas não basta desmenti-lo: é preciso enfrentar o déficit previdenciário

Os primeiros dias do novo mandato do presidente Lula da Silva têm sido marcados pela volta do debate de questões absolutamente anacrônicas e que, em vários casos, pareciam superadas na sociedade brasileira. O caso mais estupefaciente até aqui foi protagonizado pelo ministro da Previdência, Carlos Lupi, que defendeu a reversão da reforma da Previdência, aprovada em 2019. “É preciso discutir esse atraso, desrespeito, acinte à cidadania que foi feito com essa antirreforma da Previdência. É preciso ter coragem para discutir isso. É o trabalho da minha vida”, afirmou Lupi ao tomar posse.

Ninguém pode se dizer surpreendido. Lupi é presidente do PDT, partido herdeiro do brizolismo, ideologia tacanha que sempre se posicionou radicalmente contra as reformas, sobretudo a da Previdência e a trabalhista. Recorde-se que Leonel Brizola, ele mesmo, chamou de “imoral” a reforma da Previdência promovida por Lula em seu primeiro mandato. Ou seja, quem colocou Lupi no Ministério da Previdência sabia – ou deveria saber – o que estava fazendo.

Sentindo-se à vontade, Lupi acrescentou que “a Previdência não é deficitária” e que ele provará isso “com números, dados e informações”. Não se sabe bem de que fontes vieram os “números, dados e informações” mencionados por Lupi, pois a Previdência, no acumulado de 12 meses até novembro de 2022, registrou déficit de R$ 262 bilhões – o rombo chega a R$ 370,1 bilhões quando se inclui o regime dos servidores concursados e dos militares inativos e pensionistas. Mas é inútil discutir com quem escolheu deliberadamente negar a realidade.

Não há nenhum problema quando devotos de seitas políticas retrógradas como o brizolismo demonstram publicamente seus delírios. Mas há muitos problemas quando um desses devotos ocupa um cargo de destaque no primeiro escalão do governo, situação em que cada palavra dita por ele tem potencial de causar estragos, seja ao governo, seja ao País. Por esse motivo, horas depois da inacreditável declaração de Lupi, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, tratou de desmentir o colega, dizendo que “não há nenhuma proposta” de reversão da reforma da Previdência. Costa atribuiu o arroubo de Lupi ao “entusiasmo” com o início do novo governo: “As energias estão lá em cima”.

Faria bem o governo se canalizasse essas energias não para a reversão de reformas e políticas que fizeram e fazem muito bem ao País, como a da Previdência e a trabalhista, e sim para seu aprofundamento. O caso da Previdência, a propósito, é exemplar: quem tem um mínimo de bom senso sabe que, em breve, em razão do acelerado envelhecimento da população e da informalidade crônica do mercado de trabalho, outra reforma será necessária.

A Previdência representou 53,4% do total de despesas primárias em 2021, ou R$ 767,8 bilhões, segundo o Tribunal de Contas da União. Desde 2017, os regimes de Previdência consomem mais da metade de todos os gastos do Executivo, dinâmica que, por óbvio, tem achatado os demais dispêndios públicos.

Em tempos de debates sobre a âncora fiscal que substituirá o teto de gastos, é importante lembrar que, não fossem as despesas previdenciárias, o País teria superávit primário. Entre 2011 e 2020, o déficit da Previdência aumentou, em média, 14,5% ao ano. Exatamente porque se trata de um sistema essencial para o País, a Previdência precisa ser sustentável no longo prazo.

O buraco da Previdência não é um acidente do destino. Para além da combinação entre subfinanciamento do sistema e o envelhecimento da população, muitas políticas públicas aumentaram as renúncias de receitas previdenciárias, como a desoneração da folha de pagamento e os regimes especiais para microempreendedores individuais e empresas enquadradas no Simples. Soluções para os dilemas presentes e futuros da Previdência Social passam, em primeiro lugar, por encarar a realidade como ela é, o que requer reformas que contenham seus gastos e ampliem sua arrecadação. Lamentavelmente, é o oposto do que o País tem feito nos últimos anos – e não será com delírios que o problema será solucionado.

Marcos republicanos sob ameaça

O Estado de S. Paulo.

Confusão do governo na revisão das competências da ANA expõe sua inépcia, sua ojeriza à iniciativa privada e seu apetite por submeter agências reguladoras ao seu arbítrio

Em seu primeiro dia, o novo governo tentou desmembrar a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e esvaziar sua função reguladora no saneamento. Além de inepta, a manobra desperta apreensão por sinalizar um duplo retrocesso: no saneamento em si e na autonomia das agências reguladoras.

A MP que define as atribuições dos 37 Ministérios alterou a lei de criação da ANA para vinculá-la ao Ministério do Meio Ambiente. O mesmo ato retirou de seu nome a menção ao saneamento e excluiu sua atribuição de instituir as normas de referência no setor. Ao mesmo tempo, o decreto sobre o Ministério das Cidades atribuiu esse papel à Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental da pasta.

A medida é ilegal, porque a competência da ANA para elaborar as normas foi instituída pelo marco legal do saneamento e só pode ser alterada por lei. Além disso, apesar de a MP ter repassado a ANA para o Meio Ambiente, o decreto que estrutura o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional também prevê a vinculação do órgão.

A Casa Civil já sinalizou que vai retificar a confusão, mas a sensação de insegurança já está instalada. Porém, mais do que mero equívoco, a tentativa de transferir as competências da ANA à administração direta parece ser um balão de ensaio de um governo atavicamente hostil à iniciativa privada e à independência das agências reguladoras.

Ao contrário do que se fez na energia, transportes ou telecomunicações, os serviços de água e esgoto ainda são prestados quase que exclusivamente por estatais contratadas sem licitação nem metas. O marco, aprovado em 2020, fez valer a exigência constitucional de licitação e metas, criando condições para a atração do capital privado. Para garantir segurança e previsibilidade, foi atribuído à ANA o papel de editar as diretrizes de referência a serem seguidas pelas mais de 80 agências reguladoras infranacionais.

À época, o PT se opôs ao marco, e em dezembro o grupo de transição para o novo governo já recomendou a sua “revisão” para barrar concessões ou privatizações e esvaziar a autonomia da ANA. Dito e feito.

Trata-se de uma tentativa de autorrealizar uma profecia. Membros do governo alegam que a ANA não tem “controle da sociedade”, gerando insegurança jurídica, e que o marco não trouxe os investimentos desejados. Mas, como toda agência, a ANA é fiscalizada pelo Congresso. Só em 2021, os investimentos no saneamento cresceram 27% – só os privados, 41%. Agora, porém, esse avanço está ameaçado.

“Evidentemente, essas incertezas geram a procura por um plano B”, disse ao Estadão uma fonte ligada ao setor. “No limite, as empresas privadas de saneamento vão apenas manter a estrutura que têm hoje e parar de investir, à espera de uma definição sobre o futuro.” O freio põe em risco as metas de universalização estabelecidas pelo marco, ameaçando perpetuar o estado de exclusão e degradação em que vivem os 35 milhões de brasileiros sem água potável e os 100 milhões sem esgoto.

A ofensiva sobre a ANA é parte de um conteúdo programático. As agências reguladoras foram criadas nos anos 90 para garantir que as privatizações e concessões fossem reguladas por critérios técnicos, em prol do interesse público, livres de pressões de corporações políticas e econômicas a serviço de interesses privados. Trata-se de órgãos de Estado, não de governo – e muito menos de um receptáculo de aparelhamento partidário. É justamente isso que sempre despertou a ojeriza do PT. Na oposição, o partido se opôs à criação das agências. No governo, fez o diabo para sabotá-las, fosse asfixiando-as financeiramente, fosse retardando nomeações, fosse obliterando projetos de lei que fortalecessem sua isenção e sua capacidade técnica.

A pandemia foi a grande vindicação das agências. Só Deus sabe o quanto Jair Bolsonaro teria retardado a aprovação das vacinas não fosse a autonomia da Anvisa. O lulopetismo e o bolsonarismo se apresentam como antíteses um do outro. Mas eis mais um ponto em que convergem: o anseio mútuo por submeter toda a máquina do Estado ao seu arbítrio.

Uma bem-vinda regulamentação

O Estado de S. Paulo.

Telessaúde, que se fortaleceu durante a pandemia, veio para ficar e, por isso, precisava de regras

O Brasil acaba de ganhar uma lei que autoriza e regulamenta o atendimento a distância na área da saúde, a chamada telessaúde. A notícia é boa e consolida uma prática que se fortaleceu durante a pandemia de covid-19, quando o Congresso Nacional chegou até a disciplinar a telemedicina em caráter temporário. Agora, como informou o Estadão, a nova lei abrange a oferta de serviços de medicina, enfermagem, fisioterapia e odontologia, entre outros. Sem dúvida, um passo importante para ampliar o número de pessoas atendidas no País.

Em recente entrevista ao Estadão, o médico Claudio Lottenberg, presidente do Conselho Deliberativo do Hospital Albert Einstein, afirmou que o atendimento remoto representa uma revolução na área da saúde − e que o Brasil, infelizmente, demorou a regulamentar a atividade. “Estamos atrasados”, disse Lottenberg, informando que sete em cada dez pacientes que experimentam a telemedicina voltam a fazer uso desse tipo de procedimento em 60 dias. Sem dúvida, um bom sinal.

É preciso atenção redobrada, porém, em relação à qualidade dos serviços remotos. Isso deve ser uma preocupação permanente das autoridades e dos respectivos Conselhos Federais. O propósito da telessaúde é facilitar e ampliar a assistência, dando acesso a profissionais gabaritados mesmo em localidades remotas. Fazer isso em detrimento da qualidade do serviço seria completamente descabido.

Em maio, o Conselho Federal de Medicina (CFM) já havia disciplinado o exercício da telemedicina no País. Na época, o professor de Telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Chao Lung Wen, enfatizou a importância não só da regulamentação, mas de que esse tipo de procedimento seja incorporado aos currículos das faculdades. Sim, é preciso garantir formação adequada aos profissionais da saúde, até mesmo para evitar o mau uso de avanços propiciados pela tecnologia. “Queremos uma telemedicina responsável, não mercantilista”, disse ele ao Estadão.

Chao Lung Wen deu exemplos de como a telessaúde pode ser útil. Segundo ele, é comum que exames realizados no Sistema Único de Saúde (SUS) sejam desperdiçados, porque o paciente não tem a quem mostrar o resultado e, quando consegue uma consulta, o diagnóstico já perdeu a validade. Algo que uma teleconsulta, claro, resolveria. Outra situação recorrente é a de pacientes que viajam apenas para receber instruções acerca de exames que farão dias depois. De novo, um contato por celular ou pelo computador poderia ser mais do que suficiente.

A Lei 14.510/2022, corretamente, confere autonomia aos profissionais para deliberar acerca da conveniência de atendimentos remotos, assim como dá ao paciente o direito de recusar esse tipo de consulta. A confidencialidade dos dados é outro princípio assegurado. Há discussões que ficaram de fora do texto aprovado, como a que diz respeito aos locais de onde poderão ser ofertadas consultas de telessaúde. Seja como for, a regulamentação do atendimento médico remoto, tal como se apresenta, representa avanço inegável, pois somente assim tanto pacientes como médicos saberão quais os limites de um serviço que veio para ficar.

Recuperação da China, atingida pela covid, deve ser lenta

Valor Econômico

A recuperação depende de um quadro sanitário tumultuado que provavelmente atingirá todas as regiões do país

A economia global continuará a desacelerar este ano, com a diferença de que a China terá peso marcante na retração, com uma performance igual ou inferior à média mundial. “Isso nunca ocorreu em 40 anos”, disse Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, ao prever que um terço da economia mundial entrará em recessão em 2023, ano que, para ela, será ainda mais espinhoso que o que passou.

A China caminhou para a recessão já no quarto trimestre de 2022. A política de covid-zero do presidente Xi Jinping, levada com mão de ferro, provocou novas paralisações dos setores produtivos e severos lockdowns em grandes cidades do país. Pela primeira vez houve protestos que ultrapassaram a escala de problemas regionais. Depois de culpar as autoridades locais por exagerarem no entendimento e execução de sua missão sanitária, a cúpula do PC Chinês, sob ordens do agora todo-poderoso e vitalício Xi, deu uma guinada inexplicável e de potencial desastroso. Praticamente todas as restrições anteriores foram retiradas em dezembro.

O vírus passou então a circular livremente sem que um esforço preparatório básico estivesse completo ou em estágio adiantado. As vacinas chinesas têm eficácia menor que as ocidentais e 30%, ou 260 milhões de pessoas acima dos 60 anos, não tomaram a terceira dose. A situação é pior entre os de mais de 80 anos - são 50% sem o reforço. As piores previsões estão ocorrendo: hospitais superlotados, grande atraso no atendimento, crematórios funcionando a todo vapor e muitas mortes, que sumiram das estatísticas.

Pela primeira vez a Organização Mundial da Saúde acusou a China de amenizar os dados do impacto da covid no país e o número de vítimas. O governo chinês mudou o conceito de vítimas do vírus, passando a considerar apenas aquelas que faleceram por falha respiratória ou pneumonia, e desconsiderando outras condições que se tornaram fatais por terem sido agravadas pela covid. A estatística oficial, desta forma, relata 25 mortes em dezembro.

Três anos após surgir em Wuhan, estima-se que haja 37 milhões de chineses hoje infectados com o vírus e as previsões privadas de mortes atingem até 1,7 milhão. Era o cenário que Xi queria evitar com os frequentes, severos e cada vez mais custosos lockdowns. Não se sabe se os danos políticos decorrentes da manutenção dos isolamentos acabará sendo maior ou não do que a liberação geral posterior, com seu cortejo de mortes. O fato é que logo após ser sagrado como o líder mais poderoso desde Mao Tsetung, Xi sofrerá de toda forma um grave abalo em seu prestígio. Após um mês de silêncio, o líder disse que o país “entrou em uma nova fase de resposta à covid, onde desafios difíceis permanecem”.

Xi divulgou números que indicam que a China cresceu 4,4% em 2022. Mas as atividades econômicas continuaram se retraindo em dezembro. A consultoria Oxford Economics estima que o PIB avançou 2,7% no ano passado e crescerá 4,2% este ano. Pelos seus cálculos, três anos de pandemia trouxeram perdas de 4,7% do PIB, que só serão plenamente recuperadas em 2030. O país terá de voltar à forma enfrentando obstáculos como a perda de confiança do consumidor, menores gastos de consumo e, de alguma forma, perdas na produção decorrentes da propagação do vírus.

A crise imobiliária é outro peso contrário ao crescimento chinês. Créditos oficiais estão sendo oferecidos para as incorporadoras que têm viabilidade de sobreviver, mas a queda de receitas de governos regionais com a venda de terrenos para a construção retira um meio primordial de estímulo à atividade, que soma pelo menos um quarto do PIB. Com os consumidores ariscos, o governo deve recorrer de novo aos investimentos em infraestrutura para relançar a economia. Tem espaço para isso, porque a dívida do governo geral é de 49,7% do PIB (Oxford). O déficit orçamentário foi de 8,6% do PIB em 2022.

Todos os indicadores de dezembro foram negativos, a começar pelos do setor imobiliário, que chegaram à mínima histórica. O setor de serviços regrediu a seu desempenho de fevereiro de 2020, auge da pandemia na China. O ritmo de produção industrial caiu mais uma vez. A recuperação pode ser lenta, já que depende de um quadro sanitário tumultuado que provavelmente atingirá todas as regiões do país. A reação dessa vez não será tão vigorosa quanto a que ocorreu na estreia da covid-19, controlada rapidamente.

 

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