Combate a fake news deve ser feito com cautela
O Globo
Ainda que bem-intencionada, ação da AGU
precisa ser revertida para evitar abusos e censura
Ao erodir barreiras contra a propagação de
fake news, a revolução digital apresentou um enorme desafio para sociedades
democráticas. Discussões sobre liberdade de expressão e necessidade de proteger
o Estado Democrático de Direito, que estavam adormecidas, voltaram com força.
Nessa tendência, que é global, o Brasil teve papel de destaque. Após uma
disputa acirrada, o resultado das eleições interrompeu um projeto de viés
autoritário alavancado por fake news.
Nesta primeira semana do novo governo, não faltaram declarações e a criação de órgãos contra a propagação de desinformação tendo a defesa da democracia como mote. Mesmo que tudo seja feito de boa-fé, é preciso que a sociedade analise com objetividade e precaução essas iniciativas para que se evite a criação de estruturas que possam ser utilizadas para o cometimento de abusos e censuras, neste ou em qualquer futuro governo.
Causou particular preocupação o anúncio
feito por Jorge Messias, chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), sobre o
lançamento da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, que representaria
a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para
resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas. Criada pela
Constituição de 1988, a AGU já tinha a prerrogativa de defender os interesses
da União em qualquer matéria, inclusive, é claro, quando tais interesses são
violados pela divulgação de fake news — por isso o estranhamento.
Se, por exemplo, uma pessoa ou grupo
divulgarem notícias sabidamente falsas sobre uma campanha de vacinação, que é
uma atribuição do Estado, a AGU tem todas as condições de levar o caso à
Justiça. Do ponto de vista jurídico, portanto, a nova procuradoria não faz
sentido. Mas sua criação traz outros riscos. Uma de suas atribuições seria
proteger a administração pública de ataques deliberados com mentiras.
A AGU é um órgão do Poder Executivo e, como
tal, sujeito às influências políticas do governo da ocasião (e essa não é uma
singularidade do Estado brasileiro). O risco da recém-criada procuradoria se
transformar num “tribunal da verdade” nesse ambiente não é pequeno. Seria um
órgão estatal a definir o que é uma campanha de fake news e o que é apenas uma
opinião. É verdade que a AGU apenas ajuizaria ações, cabendo a palavra final ao
Judiciário, mas nunca se deve subestimar o poder do Executivo. Um simples processo
vindo da AGU é suficiente para intimidar e calar — o mero envolvimento da
poderosa administração pública em alguns casos já provocaria esse efeito.
O envolvimento do Poder Executivo em
atividades de controle da circulação de informações é típico de países
autocráticos. Bem fez o Marco Civil da Internet ao não contemplar essa
participação em nosso país. O novo governo faria melhor se apoiasse o Projeto
de Lei 2.630/2020, conhecido por PL das Fake News e que propõe avanços, como a
exigência de que as plataformas tenham políticas transparentes de moderação.
Até sua aprovação, a definição de desinformação continuará vaga. As fake news
são uma ameaça, mas o remédio contra elas pode se transformar em veneno.
É essencial desatar nós que travam
conclusão de obra do metrô no Rio
O Globo
Paralisada desde 2015, construção da
Estação Gávea, que já custou R$ 1 bilhão, traz riscos à vizinhança
É acertada a decisão do governador do Rio,
Cláudio Castro, de priorizar a conclusão da Estação Gávea da Linha 4 do metrô
(Ipanema-Barra). Em entrevista ao GLOBO, Castro disse que costura uma saída
jurídica para retomar ainda neste semestre as obras paralisadas em 2015. Parte
do pacote de mobilidade urbana para os Jogos Rio-2016, elas tiveram de ser
interrompidas por falta de recursos quando o estado enfrentava grave crise
financeira — foi a única das seis estações projetadas que não ficou pronta para
o evento.
Há motivos de sobra para a retomada. O mais
grave e urgente é a deterioração da obra, que põe em risco não só o que já foi
executado, mas também a segurança das construções vizinhas, entre elas o campus
da Pontifícia Universidade Católica (PUC). Em fins de 2017, a estrutura, cuja
profundidade chega a 55 metros, foi inundada com 36 milhões de litros de água
para garantir a estabilidade e evitar a corrosão dos materiais até que os
trabalhos sejam reiniciados. Mas a estratégia era provisória, e o prazo de
validade, de cinco anos, já expirou. Se não der continuidade às obras, o estado
terá de fazer o reforço das estruturas, o que significaria gastar recursos
(cerca de R$ 300 milhões) numa solução paliativa.
Concluir a estação custaria em torno de um
décimo do valor total da obra (cerca de R$ 10 bilhões à época), a mais cara da
aventura olímpica do Rio. Mas a questão não é só essa. Para cumprir o objetivo,
Castro terá de desatar um nó complicado. Uma decisão da 3ª Vara de Fazenda
Pública em ação do Ministério Público impede o estado de destinar recursos ao
consórcio Rio Barra, responsável pela construção. Isso porque o MP identificou
um sobrepreço de pelo menos R$ 400 milhões na Linha 4, tocada em meio aos
desmandos dos governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, ambos condenados
por corrupção.
Compete não só ao governador Cláudio
Castro, mas também ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas do Estado
(TCE) resolver o impasse que impede a retomada das obras. Parece inegável que
houve roubalheira na Linha 4 do metrô fluminense. Mas, do jeito que está, o
buraco da Estação Gávea, onde já foi enterrado cerca de R$ 1 bilhão, não serve
para nada, a não ser como mais um lamentável monumento à incúria. Estudos
técnicos mostram que, com praticamente metade das obras já executada, o melhor
custo-benefício é concluir a estação.
A Estação Gávea é crucial para melhorar a
mobilidade dos trabalhadores na cidade. Quando pronta, deverá beneficiar 19 mil
passageiros por dia, turbinando a subutilizada Linha 4.
Os desvios de dinheiro público nas obras faraônicas feitas para a Olimpíada do Rio devem ser punidos exemplarmente. Cabe aos órgãos de controle e à Justiça cobrar dos responsáveis pelo descalabro. Mas a punição não pode recair sobre o cidadão. É fundamental resolver os impasses que impedem a continuação da Estação Gávea. Caso contrário, a população será duplamente prejudicada: na corrupção que suga os já escassos recursos públicos e na privação de um transporte digno.
A chamada de Lula
Folha de S. Paulo
Presidente deve dissipar dúvidas da
Esplanada e do país sobre rumos do governo
Inícios de governo não raro elevam a
frequência de declarações divergentes, anúncios atabalhoados e medidas
nebulosas por parte das novas autoridades. Tratando-se do governo Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) e de seu afã em demarcar contrastes com o predecessor, o
risco parece mais claro.
Assim o
indica o agendamento de uma reunião ministerial para esta sexta-feira (6),
antes mesmo de completada uma semana desde a posse do presidente. Dos 37 nomes
do primeiro escalão, aliás, 16 só foram confirmados no apagar das luzes do ano
passado.
Nesse grupo está a titular do Turismo,
Daniela Carneiro, que responde pelo primeiro mal-estar político da
administração. A Folha revelou que a deputada eleita e o marido, ambos da União
Brasil fluminense, contaram em campanhas com o apoio de um ex-PM condenado e
preso sob acusação de chefiar uma milícia no estado.
O Planalto descartou afastar a ministra,
com o argumento razoável de que nada de mais grave pesa contra sua atuação. De
todo modo é obviamente embaraçoso o elo, que inclui ainda outro encarcerado,
com figuras de atividade criminosa associada ao bolsonarismo.
A maior
presepada da equipe de Lula, no entanto, partiu de Carlos Lupi (PDT),
outro da última leva de escolhidos e instalado na Previdência Social,
recém-separada da pasta do Trabalho. De moto próprio, o pedetista aventurou-se
a negar o déficit do INSS e a anunciar uma comissão destinada a reexaminar a
reforma das aposentadorias.
Essa modalidade de negacionismo já deveria
estar superada no debate nacional, mas a tese de Lupi mantém seu apelo à
esquerda.
Já se torturaram números e se reviraram
contabilidades, em especial nas administrações petistas do passado, para
embelezar o balanço previdenciário. O que nenhum malabarismo aritmético pode
esconder é que as despesas com benefícios, exorbitantes para os padrões
emergentes, cresciam em ritmo insustentável até a reforma.
Menos mau que o ministro da Casa Civil, Rui
Costa (PT), tenha de certa forma desautorizado o colega, ao dizer que nenhuma
proposta de revisão das regras está em elaboração no momento —o que não chega a
ser uma negativa peremptória de tal intenção.
É provável que boa parte da Esplanada,
assim como da sociedade brasileira, ainda não tenha clareza sobre os rumos do
novo governo para além dos revogaços materiais e simbólicos desta primeira
semana. Lula fará bem se começar a dissipar as dúvidas em sua primeira reunião
com o gabinete.
Passo a passo
Folha de S. Paulo
Descriminalizar o aborto é difícil, mas
garantir acesso legal ainda é necessário
A descriminalização do aborto é providência
que deve ser tomada pelo Legislativo, mas cabe ao Executivo construir
articulações para pautas de seu interesse. A configuração do ambiente político
determinará a dificuldade da tarefa.
À Folha, a ministra das Mulheres,
Maria Aparecida Gonçalves, disse que, "da
forma como está sendo colocado hoje pelo Congresso, qualquer discussão sobre
aborto vamos perder mais do que avançar".
A declaração é realista e se refere à
composição da Câmara e do Senado, mais propensa a posições conservadoras sobre
o tema, também expressivas na população.
Em dezembro do ano passado, deputados
tentaram uma última cartada para proibir a interrupção da gravidez em qualquer
situação, com o chamado "Estatuto do Nascituro", mas foram barrados
por estratégia regimental da oposição.
Mesmo que a descriminalização seja debate
difícil no presente contexto, porém, ainda há obstáculos a serem superados nos
casos em que o procedimento é permitido.
Segundo o Código Penal, qualquer relação
sexual com menores de 14 anos é estupro de vulnerável, e a gravidez nessa idade
é considerada de risco por especialistas. Em 2021, contudo, das 1.556
internações relacionadas a abortos na faixa etária entre 10 e 14 anos, apenas 131
(8%) ocorreram por causas autorizadas: estupro, risco à vida da gestante e
anencefalia do feto.
Os outros 1.425 casos (92%) se deram em
razão de abortos espontâneos ou induzidos fora dos hospitais. Ademais foram realizados
1.502 procedimentos de curetagem ou aspiração intrauterina, que são mais
associados a tentativas malsucedidas de interrupção da gestação do que a casos
naturais.
O número desproporcional revela problemas
como a falta de conhecimento da legislação pelas famílias das vítimas,
preconceito contra a prática e até atuação do Executivo e do Judiciário para
dificultar o acesso ao procedimento.
O caso da juíza que tentou convencer uma
criança de 11 anos a continuar a gravidez gerou revolta no ano passado. Em
seguida, o Mistério da
Saúde lançou cartilha afirmando que "todo abordo é crime" e
que as pesquisas que apontam o risco da gestação de jovens com menos de 15 anos
são inconsistentes —negando de forma acintosa o que diz a lei e a ciência.
O anúncio de que o documento será revogado
pela atual gestão da pasta é, por óbvio, bem-vindo. Ao ministério da Mulher
cabe promover políticas públicas que agilizem e facilitem o acesso ao direito
do aborto legal —principalmente para a população mais vulnerável.
O Estado de S. Paulo.
Quando um ministro prega reversão da
reforma da Previdência, nota-se que o retrocesso está à espreita. Mas não basta
desmenti-lo: é preciso enfrentar o déficit previdenciário
Os primeiros dias do novo mandato do
presidente Lula da Silva têm sido marcados pela volta do debate de questões
absolutamente anacrônicas e que, em vários casos, pareciam superadas na
sociedade brasileira. O caso mais estupefaciente até aqui foi protagonizado
pelo ministro da Previdência, Carlos Lupi, que defendeu a reversão da reforma
da Previdência, aprovada em 2019. “É preciso discutir esse atraso, desrespeito,
acinte à cidadania que foi feito com essa antirreforma da Previdência. É
preciso ter coragem para discutir isso. É o trabalho da minha vida”, afirmou
Lupi ao tomar posse.
Ninguém pode se dizer surpreendido. Lupi é
presidente do PDT, partido herdeiro do brizolismo, ideologia tacanha que sempre
se posicionou radicalmente contra as reformas, sobretudo a da Previdência e a
trabalhista. Recorde-se que Leonel Brizola, ele mesmo, chamou de “imoral” a
reforma da Previdência promovida por Lula em seu primeiro mandato. Ou seja,
quem colocou Lupi no Ministério da Previdência sabia – ou deveria saber – o que
estava fazendo.
Sentindo-se à vontade, Lupi acrescentou que
“a Previdência não é deficitária” e que ele provará isso “com números, dados e
informações”. Não se sabe bem de que fontes vieram os “números, dados e
informações” mencionados por Lupi, pois a Previdência, no acumulado de 12 meses
até novembro de 2022, registrou déficit de R$ 262 bilhões – o rombo chega a R$
370,1 bilhões quando se inclui o regime dos servidores concursados e dos
militares inativos e pensionistas. Mas é inútil discutir com quem escolheu
deliberadamente negar a realidade.
Não há nenhum problema quando devotos de
seitas políticas retrógradas como o brizolismo demonstram publicamente seus
delírios. Mas há muitos problemas quando um desses devotos ocupa um cargo de
destaque no primeiro escalão do governo, situação em que cada palavra dita por
ele tem potencial de causar estragos, seja ao governo, seja ao País. Por esse
motivo, horas depois da inacreditável declaração de Lupi, o ministro da Casa
Civil, Rui Costa, tratou de desmentir o colega, dizendo que “não há nenhuma
proposta” de reversão da reforma da Previdência. Costa atribuiu o arroubo de
Lupi ao “entusiasmo” com o início do novo governo: “As energias estão lá em
cima”.
Faria bem o governo se canalizasse essas
energias não para a reversão de reformas e políticas que fizeram e fazem muito
bem ao País, como a da Previdência e a trabalhista, e sim para seu
aprofundamento. O caso da Previdência, a propósito, é exemplar: quem tem um
mínimo de bom senso sabe que, em breve, em razão do acelerado envelhecimento da
população e da informalidade crônica do mercado de trabalho, outra reforma será
necessária.
A Previdência representou 53,4% do total de
despesas primárias em 2021, ou R$ 767,8 bilhões, segundo o Tribunal de Contas
da União. Desde 2017, os regimes de Previdência consomem mais da metade de
todos os gastos do Executivo, dinâmica que, por óbvio, tem achatado os demais
dispêndios públicos.
Em tempos de debates sobre a âncora fiscal
que substituirá o teto de gastos, é importante lembrar que, não fossem as
despesas previdenciárias, o País teria superávit primário. Entre 2011 e 2020, o
déficit da Previdência aumentou, em média, 14,5% ao ano. Exatamente porque se
trata de um sistema essencial para o País, a Previdência precisa ser
sustentável no longo prazo.
O buraco da Previdência não é um acidente
do destino. Para além da combinação entre subfinanciamento do sistema e o
envelhecimento da população, muitas políticas públicas aumentaram as renúncias
de receitas previdenciárias, como a desoneração da folha de pagamento e os
regimes especiais para microempreendedores individuais e empresas enquadradas
no Simples. Soluções para os dilemas presentes e futuros da Previdência Social
passam, em primeiro lugar, por encarar a realidade como ela é, o que requer
reformas que contenham seus gastos e ampliem sua arrecadação. Lamentavelmente,
é o oposto do que o País tem feito nos últimos anos – e não será com delírios
que o problema será solucionado.
Marcos republicanos sob ameaça
O Estado de S. Paulo.
Confusão do governo na revisão das
competências da ANA expõe sua inépcia, sua ojeriza à iniciativa privada e seu
apetite por submeter agências reguladoras ao seu arbítrio
Em seu primeiro dia, o novo governo tentou desmembrar
a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e esvaziar sua função
reguladora no saneamento. Além de inepta, a manobra desperta apreensão por
sinalizar um duplo retrocesso: no saneamento em si e na autonomia das agências
reguladoras.
A MP que define as atribuições dos 37
Ministérios alterou a lei de criação da ANA para vinculá-la ao Ministério do
Meio Ambiente. O mesmo ato retirou de seu nome a menção ao saneamento e excluiu
sua atribuição de instituir as normas de referência no setor. Ao mesmo tempo, o
decreto sobre o Ministério das Cidades atribuiu esse papel à Secretaria
Nacional de Saneamento Ambiental da pasta.
A medida é ilegal, porque a competência da
ANA para elaborar as normas foi instituída pelo marco legal do saneamento e só
pode ser alterada por lei. Além disso, apesar de a MP ter repassado a ANA para
o Meio Ambiente, o decreto que estrutura o Ministério de Integração e
Desenvolvimento Regional também prevê a vinculação do órgão.
A Casa Civil já sinalizou que vai retificar
a confusão, mas a sensação de insegurança já está instalada. Porém, mais do que
mero equívoco, a tentativa de transferir as competências da ANA à administração
direta parece ser um balão de ensaio de um governo atavicamente hostil à
iniciativa privada e à independência das agências reguladoras.
Ao contrário do que se fez na energia,
transportes ou telecomunicações, os serviços de água e esgoto ainda são
prestados quase que exclusivamente por estatais contratadas sem licitação nem
metas. O marco, aprovado em 2020, fez valer a exigência constitucional de
licitação e metas, criando condições para a atração do capital privado. Para
garantir segurança e previsibilidade, foi atribuído à ANA o papel de editar as
diretrizes de referência a serem seguidas pelas mais de 80 agências reguladoras
infranacionais.
À época, o PT se opôs ao marco, e em
dezembro o grupo de transição para o novo governo já recomendou a sua “revisão”
para barrar concessões ou privatizações e esvaziar a autonomia da ANA. Dito e
feito.
Trata-se de uma tentativa de autorrealizar
uma profecia. Membros do governo alegam que a ANA não tem “controle da
sociedade”, gerando insegurança jurídica, e que o marco não trouxe os
investimentos desejados. Mas, como toda agência, a ANA é fiscalizada pelo
Congresso. Só em 2021, os investimentos no saneamento cresceram 27% – só os
privados, 41%. Agora, porém, esse avanço está ameaçado.
“Evidentemente, essas incertezas geram a
procura por um plano B”, disse ao Estadão uma fonte ligada ao setor. “No
limite, as empresas privadas de saneamento vão apenas manter a estrutura que
têm hoje e parar de investir, à espera de uma definição sobre o futuro.” O
freio põe em risco as metas de universalização estabelecidas pelo marco, ameaçando
perpetuar o estado de exclusão e degradação em que vivem os 35 milhões de
brasileiros sem água potável e os 100 milhões sem esgoto.
A ofensiva sobre a ANA é parte de um
conteúdo programático. As agências reguladoras foram criadas nos anos 90 para
garantir que as privatizações e concessões fossem reguladas por critérios
técnicos, em prol do interesse público, livres de pressões de corporações
políticas e econômicas a serviço de interesses privados. Trata-se de órgãos de
Estado, não de governo – e muito menos de um receptáculo de aparelhamento
partidário. É justamente isso que sempre despertou a ojeriza do PT. Na
oposição, o partido se opôs à criação das agências. No governo, fez o diabo
para sabotá-las, fosse asfixiando-as financeiramente, fosse retardando
nomeações, fosse obliterando projetos de lei que fortalecessem sua isenção e
sua capacidade técnica.
A pandemia foi a grande vindicação das
agências. Só Deus sabe o quanto Jair Bolsonaro teria retardado a aprovação das
vacinas não fosse a autonomia da Anvisa. O lulopetismo e o bolsonarismo se
apresentam como antíteses um do outro. Mas eis mais um ponto em que convergem:
o anseio mútuo por submeter toda a máquina do Estado ao seu arbítrio.
Uma bem-vinda regulamentação
O Estado de S. Paulo.
Telessaúde, que se fortaleceu durante a pandemia, veio para ficar e, por isso, precisava de regras
O Brasil acaba de ganhar uma lei que
autoriza e regulamenta o atendimento a distância na área da saúde, a chamada
telessaúde. A notícia é boa e consolida uma prática que se fortaleceu durante a
pandemia de covid-19, quando o Congresso Nacional chegou até a disciplinar a
telemedicina em caráter temporário. Agora, como informou o Estadão, a nova lei
abrange a oferta de serviços de medicina, enfermagem, fisioterapia e
odontologia, entre outros. Sem dúvida, um passo importante para ampliar o
número de pessoas atendidas no País.
Em recente entrevista ao Estadão, o médico
Claudio Lottenberg, presidente do Conselho Deliberativo do Hospital Albert
Einstein, afirmou que o atendimento remoto representa uma revolução na área da
saúde − e que o Brasil, infelizmente, demorou a regulamentar a atividade.
“Estamos atrasados”, disse Lottenberg, informando que sete em cada dez
pacientes que experimentam a telemedicina voltam a fazer uso desse tipo de
procedimento em 60 dias. Sem dúvida, um bom sinal.
É preciso atenção redobrada, porém, em
relação à qualidade dos serviços remotos. Isso deve ser uma preocupação
permanente das autoridades e dos respectivos Conselhos Federais. O propósito da
telessaúde é facilitar e ampliar a assistência, dando acesso a profissionais
gabaritados mesmo em localidades remotas. Fazer isso em detrimento da qualidade
do serviço seria completamente descabido.
Em maio, o Conselho Federal de Medicina
(CFM) já havia disciplinado o exercício da telemedicina no País. Na época, o
professor de Telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(USP), Chao Lung Wen, enfatizou a importância não só da regulamentação, mas de
que esse tipo de procedimento seja incorporado aos currículos das faculdades.
Sim, é preciso garantir formação adequada aos profissionais da saúde, até mesmo
para evitar o mau uso de avanços propiciados pela tecnologia. “Queremos uma
telemedicina responsável, não mercantilista”, disse ele ao Estadão.
Chao Lung Wen deu exemplos de como a
telessaúde pode ser útil. Segundo ele, é comum que exames realizados no Sistema
Único de Saúde (SUS) sejam desperdiçados, porque o paciente não tem a quem
mostrar o resultado e, quando consegue uma consulta, o diagnóstico já perdeu a
validade. Algo que uma teleconsulta, claro, resolveria. Outra situação
recorrente é a de pacientes que viajam apenas para receber instruções acerca de
exames que farão dias depois. De novo, um contato por celular ou pelo
computador poderia ser mais do que suficiente.
A Lei 14.510/2022, corretamente, confere autonomia aos profissionais para deliberar acerca da conveniência de atendimentos remotos, assim como dá ao paciente o direito de recusar esse tipo de consulta. A confidencialidade dos dados é outro princípio assegurado. Há discussões que ficaram de fora do texto aprovado, como a que diz respeito aos locais de onde poderão ser ofertadas consultas de telessaúde. Seja como for, a regulamentação do atendimento médico remoto, tal como se apresenta, representa avanço inegável, pois somente assim tanto pacientes como médicos saberão quais os limites de um serviço que veio para ficar.
Recuperação da China, atingida pela covid,
deve ser lenta
Valor Econômico
A recuperação depende de um quadro
sanitário tumultuado que provavelmente atingirá todas as regiões do país
A economia global continuará a desacelerar
este ano, com a diferença de que a China terá peso marcante na retração, com
uma performance igual ou inferior à média mundial. “Isso nunca ocorreu em 40
anos”, disse Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário
Internacional, ao prever que um terço da economia mundial entrará em recessão
em 2023, ano que, para ela, será ainda mais espinhoso que o que passou.
A China caminhou para a recessão já no
quarto trimestre de 2022. A política de covid-zero do presidente Xi Jinping,
levada com mão de ferro, provocou novas paralisações dos setores produtivos e
severos lockdowns em grandes cidades do país. Pela primeira vez houve protestos
que ultrapassaram a escala de problemas regionais. Depois de culpar as
autoridades locais por exagerarem no entendimento e execução de sua missão
sanitária, a cúpula do PC Chinês, sob ordens do agora todo-poderoso e vitalício
Xi, deu uma guinada inexplicável e de potencial desastroso. Praticamente todas
as restrições anteriores foram retiradas em dezembro.
O vírus passou então a circular livremente
sem que um esforço preparatório básico estivesse completo ou em estágio
adiantado. As vacinas chinesas têm eficácia menor que as ocidentais e 30%, ou 260
milhões de pessoas acima dos 60 anos, não tomaram a terceira dose. A situação é
pior entre os de mais de 80 anos - são 50% sem o reforço. As piores previsões
estão ocorrendo: hospitais superlotados, grande atraso no atendimento,
crematórios funcionando a todo vapor e muitas mortes, que sumiram das
estatísticas.
Pela primeira vez a Organização Mundial da
Saúde acusou a China de amenizar os dados do impacto da covid no país e o
número de vítimas. O governo chinês mudou o conceito de vítimas do vírus, passando
a considerar apenas aquelas que faleceram por falha respiratória ou pneumonia,
e desconsiderando outras condições que se tornaram fatais por terem sido
agravadas pela covid. A estatística oficial, desta forma, relata 25 mortes em
dezembro.
Três anos após surgir em Wuhan, estima-se
que haja 37 milhões de chineses hoje infectados com o vírus e as previsões
privadas de mortes atingem até 1,7 milhão. Era o cenário que Xi queria evitar
com os frequentes, severos e cada vez mais custosos lockdowns. Não se sabe se
os danos políticos decorrentes da manutenção dos isolamentos acabará sendo
maior ou não do que a liberação geral posterior, com seu cortejo de mortes. O
fato é que logo após ser sagrado como o líder mais poderoso desde Mao Tsetung,
Xi sofrerá de toda forma um grave abalo em seu prestígio. Após um mês de
silêncio, o líder disse que o país “entrou em uma nova fase de resposta à
covid, onde desafios difíceis permanecem”.
Xi divulgou números que indicam que a China
cresceu 4,4% em 2022. Mas as atividades econômicas continuaram se retraindo em
dezembro. A consultoria Oxford Economics estima que o PIB avançou 2,7% no ano
passado e crescerá 4,2% este ano. Pelos seus cálculos, três anos de pandemia
trouxeram perdas de 4,7% do PIB, que só serão plenamente recuperadas em 2030. O
país terá de voltar à forma enfrentando obstáculos como a perda de confiança do
consumidor, menores gastos de consumo e, de alguma forma, perdas na produção
decorrentes da propagação do vírus.
A crise imobiliária é outro peso contrário
ao crescimento chinês. Créditos oficiais estão sendo oferecidos para as
incorporadoras que têm viabilidade de sobreviver, mas a queda de receitas de
governos regionais com a venda de terrenos para a construção retira um meio
primordial de estímulo à atividade, que soma pelo menos um quarto do PIB. Com
os consumidores ariscos, o governo deve recorrer de novo aos investimentos em
infraestrutura para relançar a economia. Tem espaço para isso, porque a dívida
do governo geral é de 49,7% do PIB (Oxford). O déficit orçamentário foi de 8,6%
do PIB em 2022.
Todos os indicadores de dezembro foram
negativos, a começar pelos do setor imobiliário, que chegaram à mínima
histórica. O setor de serviços regrediu a seu desempenho de fevereiro de 2020,
auge da pandemia na China. O ritmo de produção industrial caiu mais uma vez. A
recuperação pode ser lenta, já que depende de um quadro sanitário tumultuado
que provavelmente atingirá todas as regiões do país. A reação dessa vez não
será tão vigorosa quanto a que ocorreu na estreia da covid-19, controlada
rapidamente.
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