O Globo
Discussão sobre punir ou não militares é
reeditada diante da atuação das Forças Armadas nos atos de 8 de janeiro
Se o Brasil impede qualquer jornalista de
se desligar da política nas férias, o entretenimento também não contribui.
Assistir ao maravilhoso “Argentina, 1985”, vencedor do Globo de Ouro de melhor
filme estrangeiro, permite transpor para o Brasil pós-8 de janeiro uma série de
dilemas vividos na redemocratização dos países da América do Sul, que nossos
vizinhos resolveram de forma muito distinta da nossa.
O filme revisita a controvérsia, havida lá
e cá, a respeito da conveniência de julgar os militares pelos crimes de
tortura, desaparecimento e morte de cidadãos durante a ditadura, contra a
ideia, que as Forças Armadas de lá tentaram emplacar sem sucesso, de que se
tratava de uma “guerra” e, portanto, caberia uma anistia ampla em nome da
pacificação do país.
Por lá prevaleceu a ideia da necessidade de
acertar contas com a História. “Para que nunca repitamos”, insistem os
responsáveis por acusar Jorge Videla e os demais comandantes das juntas
militares.
Aqui, depois de abraçarmos a tese da anistia ampla, geral e irrestrita, ensaiamos reabrir o assunto com a Comissão da Verdade, as pensões a anistiados e no Supremo Tribunal Federal, mas nunca fizemos um julgamento como aquele, aberto ao público, expondo a realidade dos porões.
É impossível dizer se, caso tivéssemos
feito, seria mais difícil a Jair Bolsonaro, um militar expulso sem honra e
pelas portas dos fundos do quartel, reescrever a História para uma enorme
parcela da população, que passou a validar a ditadura e a enaltecer
torturadores.
Mas é bem possível que, caso aqueles que
permitiram e perpetraram crimes sob a égide do Estado tivessem sido punidos, os
militares de hoje tivessem sido menos receptivos a abraçar as teses golpistas
do ex-presidente e os ataques ao Judiciário e ao sistema eleitoral validados
por generais como Augusto Heleno e Braga Netto.
E, muito provavelmente, o Exército teria
tido uma postura bem mais distante quando estivesse diante de acampamentos com
conclamação explícita a um golpe de Estado em frente a suas dependências, bem
como não teria impedido a prisão de terroristas que foram se abrigar lá depois
de efetivamente tentarem levar o golpe a cabo.
Agora, diante da concretização do atentado
aos Três Poderes, o governo democraticamente eleito se vê às voltas com o mesmo
dilema dos anos 1980: realizar uma investigação profunda do papel das Forças
Armadas na incitação ao golpe, com punição exemplar dos responsáveis, ou adotar
panos quentes para não dificultar ainda mais a aceitação das Forças a Lula e ao
poder do ministro José Múcio.
É grande na sociedade, sobretudo entre os
apoiadores do presidente, o clamor para que não haja nenhuma reedição da
anistia. O caso dos Estados Unidos mostra que é necessário que se purguem as
feridas para que golpistas sejam desencorajados a avançar ainda mais além dos
limites.
Mas o martelo não está batido. “A nossa
democracia aguenta?”, questionou uma autoridade diretamente envolvida nas
apurações.
O governo enxerga as Forças Armadas,
sobretudo o Exército, divididas entre os que entendem a distinção entre o
governo de turno e o Estado, aqueles que chama de “bolsonaristas legalistas”, a
maioria, e uma minoria de “aloprados” dispostos a dar guarida a teses
golpistas.
Se foi com Bolsonaro que esse grupo perdeu
o medo de evocar em público seu papel de “poder moderador”, fruto de uma
leitura golpista do Artigo 142 da Constituição, o ovo da serpente foi chocado
ainda no governo Temer, quando essa ideia passou a ser ventilada por generais
como Eduardo Villas Bôas, lastreados por juristas como Ives Gandra Martins.
Portanto não é de hoje que os políticos, o
Judiciário e o Ministério Público assistem inertes à crescente ideologização no
seio das Forças Armadas. A eleição de Bolsonaro, antes um pária de quem os
militares faziam chacota, só fez ser galvanizada a leitura de que a população
levou os militares de volta ao poder, desta vez pelo voto, endossando o período
1964-1985.
É a partir de narrativas assim, potencializadas
pela máquina de radicalização de indivíduos azeitada pelo bolsonarismo e pelo
olavismo, que a extrema direita cresceu, se organizou, se armou e ganhou
financiadores.
Um polvo com tantos tentáculos precisa ser
enfrentado sem que nenhum deles seja poupado, sob pena de a tentação
revisionista e de volta a um passado autoritário permanecer fermentando e
inviabilizar não só o atual governo, como a própria democracia.
Análise muito sensata! Parabéns à jornalista e ao blog que divulga seu trabalho!
ResponderExcluirViva Vera Magalhães!!!
ResponderExcluirA mulher a VERA...
Gosto de textos assim:
ResponderExcluirEis a questão.
É dado nome aos bois.
Parabéns a articulista.
Um detalhe a ser notado:
domingo, 08 de janeiro, Bolsonaro postou uma foto com um prato de polvo frito.
Alguma semelhança ? Mera coincidência ...
Vera entende do riscado.
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