Valor Econômico
Independentemente dos fatos e da realidade,
decide-se que o risco fiscal é alto
Depois de tanto ouvir os economistas e a mídia martelarem insistentemente o problema do déficit público, da insustentabilidade da dívida, que estaria numa trajetória explosiva, que o país estaria à beira de um abismo fiscal, saíram os números das contas públicas relativos ao ano passado. Pasmem: houve um superávit de R$ 126 bilhões, equivalente a 1,3% do PIB. A dívida pública bruta, aquela que os analistas insistem estar numa trajetória explosiva, caiu 1,1% em proporção do PIB, para 73,5%. Seria de se esperar que os arautos do abismo fiscal reconhecessem que, no mínimo, tinham exagerado o problema fiscal. Mas não, pelo contrário, voltaram com ênfase reforçada, impassíveis diante dos fatos e dos dados.
Vejamos o que diz a Carta Macroeconômica do
Itaú divulgada agora em 31 de janeiro. O texto é em inglês para seus clientes e
“investidores” estrangeiros. A tradução é minha: “Na nossa visão, o superávit
primário e a queda da dívida pública em 2022 são devidos a fatores temporários,
ou a aqueles que terão um menor impacto este ano, tais como o elevado volume de
receitas extraordinárias, um forte crescimento, a alta inflação e o preço das
commodities”. E para não correr risco de ser mal compreendido e perder a
oportunidade de voltar a assustar, prossegue: “A implementação do PEC da
Transição implica um significativo aumento do gasto público em 2023,
confirmando a perspectiva da volta do crescimento da dívida pública. Na ausência
de medidas corretivas, este cenário poderá levar a um novo ciclo de baixo
crescimento, alta inflação e altas taxas de juros”.
Juros altos premiam os rentistas e
inviabilizam os investimentos na expansão da capacidade produtiva
O Valor de 1 de fevereiro
estampou a manchete: “Piora do risco fiscal leva juro real à maior taxa desde
2016”. No mesmo dia, o editorial da Folha de São Paulo, “Dívida alta, juro
alto”, destaca em caixa alta: “Ataque a rentistas - a população que poupa e
empresta ao governo - não resolverá o problema”.
Como dizia Nelson Rodrigues, antecipando o
mundo dos “fatos alternativos”, se os fatos não confirmam, pior para os fatos,
mas vamos aos fatos. A dívida pública brasileira não é alta. É muito mais baixa
do que a dos países desenvolvidos e em linha com os países em desenvolvimento,
mas com duas diferenças cruciais: é toda em moeda nacional, detida por
residentes e o país ainda tem quase 20% do PIB em reservas internacionais.
O Brasil não tem dívida externa, só dívida
interna, denominada em moeda nacional e carregada pelos rentistas, ou a
população que poupa, como preferem alguns. Quem tem renda de ativos financeiros
não é inimigo da pátria, mas faz parte da parcela privilegiada da população.
Não são investidores, como gosta de denomina-los a mídia e os economistas do
mercado financeiro, são rentistas, o que também não é crime, mas preciso
distinguir entre quem aplica sua riqueza, herdada, conquistada ou poupada, em
ativos financeiros para ter renda sem correr riscos e quem verdadeiramente
investe em capital físico, organizacional e intelectual, e contribui para o
aumento a capacidade produtiva do país.
A taxa de juros básica, que é piso e
referência para todas as demais taxas de juros no país é determinada pelo Banco
Central. Repito, a taxa básica é integralmente controlada pelo Banco Central.
As taxas para prazos mais longos são fixadas pelo mercado, instituições
financeiras que operam com a dívida pública, com base nas estimativas que fazem
da trajetória futura da taxa básica a ser fixada pelo BC. Se quisesse, o BC
poderia fixar toda a estrutura a termo das taxas da dívida, como já faz há anos
o Banco do Japão, e acabar com as pressões alarmistas para elevar ainda mais a
já injustificavelmente alta taxa básica, em nome de um “risco fiscal”
inexistente.
A dívida pública interna é um passivo do
Estado e um ativo - líquido e sem risco - do setor privado. Assim como a moeda,
a dívida pública presta um serviço aos poupadores, às empresas, aos ricos, aos
rentista e a todos os agentes na economia que precisam transferir poder
aquisitivo no tempo sem correr riscos. Se o Estado se tornasse subitamente - ou
milagrosamente como preferirão dizer seus críticos - superavitário e a dívida
pública fosse integralmente resgatada, a economia teria sérias dificuldades
para se manter saudável. Assim como no caso de uma súbita contração monetária,
muito provavelmente, entraria em profunda recessão. A moeda e a dívida pública
interna são um bem público indispensável ao bom funcionamento da economia.
Sei bem que essa não é a visão convencional
e dominante, mas é a que corresponde à realidade do mundo com moeda fiduciária.
Tem uma longa e admirável tradição intelectual desde Aristóteles. Na história
recente do pensamento econômico, tem representantes na “banking school” inglesa
do século 19, passando por Wicksell, Schumpeter, Ingham, Abba Lerner, Minsky,
entre muitos outros, quase sempre mantidos à margem das ideias
convencionalmente aceitas.
Aqueles que entenderam a moeda não como uma
mercadoria, mas como um serviço público, uma unidade de conta fiduciária, como
um ativo que poderia ser usado para pagar os impostos, deveriam ter finalmente
sido vindicados pelo desaparecimento da moeda física e a desmoralização da
relação entre quantidade de moeda e o nível de preços, depois do Quantitative
Easing.
Eu poderia me alongar sobre os equívocos da
visão convencional, tema que já tratei em diversos artigos ao longo dos últimos
anos, mas não vale a pena. João Moreira Salles abre a introdução do seu recém
publicado “Arrabalde: em busca da Amazônia” (Cia das Letras, 2022) afirmando
que é difícil compreender quando não se presta atenção. Mais à frente, no
livro, leitura obrigatória para entender o drama do descaso com a floresta,
cita Simone Weil, a pensadora francesa, para quem a atenção é a forma mais rara
e pura da generosidade.
No mundo contemporâneo, a atenção se tornou
ainda mais difícil. Para os temas técnicos, que além da atenção exigem
reflexão, sem parti pris, é praticamente impossível. Para falar da teoria
monetária e da taxa de juros, tema que além de técnico é motivo de velhas
controvérsias e de posições cristalizadas, é caso perdido. Perde-se o leitor já
nas primeiras linhas.
Meu objetivo é mais modesto. Quero que o
leitor se pergunte porque, mesmo diante de resultados muito mais favoráveis do
que o esperado, os analistas e a mídia redobram sua histeria em relação ao tal
do “risco fiscal” e clamam por juros ainda mais altos. A razão é a PEC da
Transição, o terceiro governo Lula, dirão. A PEC da Transição autorizou despesas
em torno de 2% do PIB. A alta da taxa básica de juros, promovida por canetadas
do BC desde o início de 2021, custou quase o dobro desses 2% do PIB, só em
2022. Faz sentido?
Alguns dias depois da divulgação do
resultado fiscal de 2022, o Copom decidiu manter inalterada a taxa básica em
13,75%. Como reportou o Valor, “com um tom mais duro em relação ao risco
fiscal, disse que avalia manter a taxa por mais tempo”. O BC sustenta que a
conjuntura “particularmente incerta no âmbito fiscal e as expectativas de
inflação se distanciando da meta em horizontes mais longos” exigem a manutenção
da taxa por mais tempo do que o previsto, ao menos até o final do ano.
Ou seja, mais uma vez, em nome do “risco
fiscal” e da “ancoragem das expectativas”, a extraordinária taxa básica será
mantida. O Brasil continuará a ter a taxa real, descontada a inflação, mais
alta do mundo, quase 8% ao ano. A razão? A necessidade de ancorar as
expectativas. Expectativas de quem? Do mercado financeiro, divulgadas pelos
seus próprios analistas. Por que estariam desancoradas? Por causa do risco
fiscal que eles mesmo decretaram ser muito alto e se encarregam de propagar por
toda a mídia.
Ou seja, independentemente dos dados e da
realidade, decide-se que o risco fiscal é alto. Estipula-se que o risco fiscal
determina as expectativas de alta da inflação e que a alta dos juros irá
reverter o quadro. Como? Não fica claro, dado que a alta dos juros aumenta o
serviço da dívida e agrava o risco fiscal. Pouco importa, todo mundo sabe que
expectativas desancoradas provocam inflação e que juros altos controlam a
inflação. Portanto, é preciso manter os juros altos, premiar os rentistas e
inviabilizar os verdadeiros investimentos na expansão da capacidade produtiva,
na infraestrutura e na descarbonização da economia.
Como disse recentemente James Galbraith,
que tem longa experiência no questionamento da teoria convencional, é
impossível argumentar com base nos fatos e na lógica contra o que “todo mundo
sabe”. Começo a achar que ele tem razão.
*André Lara Resende é economista.
Texto brilhante! Alguém já viu os "Mercados" financeiros agirem contra seus interesses? É lógico que toda a argumentação técnica e política é a favor do que interessa mais a eles e do que acham que vai lhes garantir maiores rendimentos. Alguém acredita que eles estão preocupados com os pobres e famintos do Brasil? Os mercados se alteraram com a tragédia dos ianomâmis? Agora, o mercado do ouro está bem preocupado com o fim do garimpo ilegal prometido por Lula nas terras indígenas!
ResponderExcluirLendo e aprendendo.
ResponderExcluirAo dizer que a dívida brasileira é menor que a de países desenvolvidos o articulista esqueceu de dizer que nos países desenvolvidos se pratica taxas negativas. No Japão rico não ganha dinheiro comprando títulos da dívida pública.
ResponderExcluirDe Arida à Mercadante!!ladeira abaixo...
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