domingo, 12 de fevereiro de 2023

Bernardo Mello Franco – Tributo à integridade

O Globo

Filme lembra saga do embaixador José Maurício Bustani, derrubado da Opaq por não endossar mentiras contra o Iraque

Numa das melhores cenas de “Sinfonia de um homem comum”, o embaixador José Maurício Bustani se emociona ao reler o discurso que fez minutos antes de ser destituído do comando da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq), em abril de 2002. O diplomata sabia que seria afastado, mas se recusava a entregar a própria cabeça numa bandeja.

“Não preciso de uma saída de herói”, disse Bustani. “Se eu sair, terei sido fiel aos princípios de integridade que guiaram minha vida profissional e pessoal”, acrescentou. Ao repetir as palavras depois de quase duas décadas, o embaixador embarga a voz e chora. O tempo passou, mas o sentimento de injustiça continua.

A saga de Bustani é lembrada no novo documentário de José Joffilly, que chegou aos cinemas na quinta-feira. O filme ouve dois presidentes, dois chanceleres e uma série de ex-funcionários da Opaq. A partir dos depoimentos, reconstitui a crise que mobilizou a opinião pública internacional e culminou na queda do brasileiro.

O diplomata foi para a frigideira por atrapalhar os planos dos EUA. George W. Bush estava decidido a invadir o Iraque. Sem provas, alegava que Saddam Hussein escondia armas de destruição em massa. Bustani desconfiava do discurso e tentava atrair Bagdá para a Opaq, o que permitiria o envio de inspetores ao país.

Se os técnicos não confirmassem a existência das armas, Washington perderia o pretexto para a guerra. Para evitar esse contratempo, Bush passou a exigir a demissão do embaixador. O cerco incluiu a instalação de escutas clandestinas em seu gabinete, em Haia. Bustani virou alvo de uma campanha de difamação, e sua mulher foi avisada de que ele deveria evitar até a água servida na Opaq.

No auge da cruzada, o porta-voz do Departamento de Estado americano, Richard Boucher, declarou que Bustani era incompetente e deveria ser demitido pelo bem da entidade. “Eu provavelmente disse coisas que não deveria ter dito”, penitencia-se o mesmo Boucher em entrevista para o filme. Ele descreve seus chefes da época como “pessoas que não tinham apreço algum pela verdade”. Quem vê o documentário não encontra razões para discordar.

Além de reproduzir as mentiras de Bush, o filme mostra Colin Powell e Donald Rumsfeld repetindo acusações falsas para justificar a guerra. Quando a farsa foi desmontada, Powell alegou que teria sido induzido a erro. O engano custou as vidas de 300 mil iraquianos e 5.000 soldados americanos, lembra Joffily.

Num lance que caberia na trilogia “O poderoso chefão”, o embaixador americano John Bolton ameaça Bustani, diz saber onde seus filhos moram e exige que ele renuncie em 24 horas. Tempos depois, o republicano desembarcaria no Brasil como assessor de Donald Trump. Eleito presidente, Jair Bolsonaro bateu continência ao recebê-lo no Vivendas da Barra.

O Itamaraty de Fernando Henrique Cardoso e Celso Lafer sai mal na foto do caso Bustani. Os dois negam ter lavado as mãos, mas são desmentidos pelo noticiário da época. “O mesmo governo que apresentou meu nome fez um acordo com os americanos e permitiu que eu fosse expulso”, resume o diplomata. Em 2003, Lula e Celso Amorim o reabilitariam como embaixador em Londres.

Aposentado, o ex-diretor da Opaq vive no Rio e aproveita o tempo livre para se dedicar ao piano. Ele confessa “certa decepção” com o que passou, mas diz que voltaria a confrontar os poderosos. “Alguém tem que falar. Se minha voz for ouvida, melhor. Se não for, não posso fazer nada. Pelo menos tentei”, conforma-se.

 

Um comentário:

  1. As mentiras de Bush filho, as mentiras de Powell, as mentiras de Trump, as mentiras de Bolsonaro... Centenas nos 2 primeiros casos, MILHARES nos 2 últimos!
    Espionagem dos EUA? Jamais, quem espiona (através de balões!!) é a China...

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