Correio Braziliense
Com menos de 50 dias de governo, é muito cedo
para um diagnóstico sobre o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. Entretanto, uma “jaula de cristal” está em construção
Adeus, senhor presidente, do ex-ministro de Planejamento chileno Carlos Matus, é um romance-ensaio inspirado no governo de Salvador Allende, que assumiu o poder com grandes expectativas de mudança e foi destituído no sangrento golpe de Estado do general Augusto Pinochet. Na ficção, o protagonista é um ex-presidente que fracassou, e seu consolo é que o sucessor também está fracassando em meio a reuniões ministeriais surreais e até a uma tentativa frustrada de golpe militar. Sindicalistas, políticos de esquerda e de direita, empresários, tecnocratas, acadêmicos, idealistas, jornalistas e amigos corruptos tecem a trama, em meio a polêmica sobre como equilibrar as finanças e estimular o crescimento.
Em outra obra — O líder sem Estado-Maior —,
Matus faz uma critica profunda aos governantes latino-americanos, compara seus
imponentes e frágeis gabinetes a uma “jaula de cristal”, na qual o presidente
se isola e se torna prisioneiro de uma pequena corte. “Um homem sem vida privada,
sempre na vitrine da opinião pública, obrigado a representar um papel que não
tem horário. Não pode aparecer ante os cidadãos que representa e dirige como
realmente é, nem transparecer seu estado de ânimo.”
“O governante sente-se satisfeito com seu
gabinete: nem sente que precisaria melhorá-lo nem saberia como fazê-lo porque o
desacerto está no comando”, descreve. Na tentativa de realizar o impossível,
continua Matus, “deteriora a governabilidade do sistema e não aprende, porque
não sabe que não sabe. Encontra-se entorpecido por uma prática que acredita
dominar, mas que, na realidade o domina. Acumula experiência, mas não adquire
perícia; tem o direito de governar, sem ter a capacidade para governar. Nesse
caso, pode ser que seu período eficaz de governo resulte nulo, pela
impossibilidade de combinar, ao mesmo tempo, o poder para fazer e a capacidade
cognitiva para fazer”.
Com menos de 50 dias de governo, é muito
cedo para um diagnóstico sobre o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Entretanto, a “jaula de cristal” parece em construção. Velhos
companheiros do presidente da República, sobreviventes da crise ética, do
colapso do governo Dilma Rousseff e do tsunami eleitoral de 2018 que levou Jair
Bolsonaro ao poder, avaliam que Lula não tem um estado-maior. Aparentemente,
não o deseja, embora não falte gente capaz na sua equipe de governo. Até agora,
Lula não cometeu nenhum erro grave, mas a repetição de pequenos erros também
desgasta.
É preciso distanciamento dos interesses
imediatos para uma boa avaliação do processo em curso. A primeira comparação
deve ser entre o desgoverno que tínhamos, com um projeto político “iliberal”, e
o novo governo, democrático e civil. A mudança de rumo foi de 180 graus, do
desmonte das políticas públicas e do permanente conflito institucional para o
resgate dos direitos humanos e uma relação de equilíbrio e harmonia entre os
Poderes.
Entretanto, com apenas uma semana de
governo, Lula se viu diante de uma tentativa de golpe de Estado, cuja face mais
visível foi a depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do
Supremo Tribunal Federal (STF), em 8 de janeiro. A resposta democrática civil
foi a demonstração de força das nossas instituições políticas; e a
solidariedade internacional nos reposicionou no Ocidente.
Cadeias globais
Políticas externa e interna não são
assimétricas. A viagem de Lula aos Estados Unidos consolidou sua aliança com o
presidente democrata Joe Biden, em torno da defesa da democracia e da questão
ambiental. Retirou o Brasil da rota dos regimes “iliberais”do Oriente, mas isso
não significa a superação das contradições e conflitos da globalização nem
supera as dificuldades da nossa inserção nas novas cadeias de produção global.
Nosso principal parceiro comercial não são
mais os Estados Unidos, é a China. Parceiros comerciais mais competitivos
dominaram o nosso mercado e deslocaram a produção brasileira de mercados
tradicionais de nossas exportações industriais, como a América Latina. Esse é o
grande cenário.
A China emerge como grande potência do
Oriente e emula o Ocidente. Os países do G-7, há 30 anos, tinham cerca de 70%
da renda mundial. Hoje, detêm algo em torno de 45% ou menos. Esse deslocamento
de renda se deveu à fragmentação da produção e à expansão de cadeias globais de
valor.
Além da China, mais cinco países em
desenvolvimento se beneficiaram fartamente desse processo: Coreia do Sul,
Índia, México, Polônia e Tailândia. O Brasil ficou à margem, desperdiçou o
ciclo de commodities ao aumentar o consumo sem ampliar seus investimentos. Tentou
adensar cadeias locais antes de se integrar ao dinâmico processo de formação de
cadeias globais e fracassou.
O discurso de Joe Biden sobre o Estado da
Nação aponta aos Estados Unidos o caminho da reverticalização de suas cadeias
de produção. Isso oferece mais ou menos oportunidades ao Brasil? Em vez de
questionar a integração, precisamos estudar como nos inserirmos nas novas
cadeias globais da indústria 4.0 e transitar para a economia verde, por meio da
democracia, explorando a formação de cadeias de valor regionais, a nova
tendência da globalização. É preciso um novo consenso nacional.
Muito se discute a questão dos juros altos
e os desencontro entre as políticas econômica e monetária. Lula se depara com a
ameaça de recessão e a emergência da situação social no país, cujos exemplos
extremos são 40 mil moradores de rua na cidade de São Paulo, a nossa maior e
mais rica metrópole, e o genocídio dos ianomâmis em Roraima.
O governo estuda três medidas para ativar a
economia: a elevação do salário mínimo, a mudança na tabela do Imposto de Renda
e a rolagem das dívidas de 80 milhões de cidadãos insolventes. São medidas
emergenciais, focadas nos brasileiros que mais precisam do governo, porém,
recolocam em discussão a relação entre equilíbrio fiscal e gasto público.
Em tempo: volto depois do carnaval.
Divirta-se.
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