Valor Econômico
Disputa pelo Senado é exemplo de que
instituições importam, mas dependem das lideranças que as fazem funcionar
A eleição para as duas Casas do Congresso,
neste início de legislatura, mobilizou a atenção pública como poucas vezes visto
antes na nossa história democrática - principalmente no caso da disputa para o
Senado.
Decerto, a presidência das duas casas é
importante para governos em virtude do poder de agenda detido por quem as
chefia. No caso da Câmara, isso é particularmente relevante porque todas as
propostas legislativas do Executivo iniciam sua tramitação por ela. Assim, se
quem dirige a Casa é antagonista do chefe do Executivo, pode impor obstáculos
significativos à apreciação de sua pauta.
Ademais, como hoje se sabe bem, o comandante da Câmara detém um poder especial: permitir o avanço ou engavetar pedidos de impeachment contra o presidente da República. Segundo o jurista Rafael Maffei, autor do livro “Como remover um presidente: teoria, história e prática do impeachment no Brasil”, tal poder discricionário decorre de uma prática, não da letra fria da lei. Contudo, importou para o impedimento de Dilma Rousseff e para que hibernassem todas as ações contra Jair Bolsonaro.
A atuação recente de presidentes das duas
Casas do Congresso ganhou destaque devido às conjunturas políticas incendiárias
vividas pelo país. Com Eduardo Cunha, exímio manejador do regimento, o destaque
adveio não só do grande apoio que amealhou na Câmara e de proverbial habilidade
política, mas principalmente de seu estilo predatório. Além do seguimento dado
ao impeachment de Dilma (retaliação contra o apoio do PT a investigações sobre
si na Comissão de Ética), foi responsável por uma “pauta-bomba” capaz de
infligir danos não só ao governo, mas ao próprio país. A predação lhe custou
caro: acabou afastado da presidência pelo STF e mandado para o xilindró.
Durante o governo Bolsonaro, novamente a
presidência da Câmara ganhou importância - mais por demérito do chefe do
Executivo do que por brilhantismo dos comandantes da casa. Bolsonaro abdicou da
condição de líder e articulador de uma coalizão congressual, deixando para
lideranças legislativas tal papel. Isso foi verbalizado diversas vezes quando,
após enviar propostas ao legislativo, Bolsonaro afirmava não ser mais problema
seu, pois a bola estaria com o Congresso.
No primeiro biênio foi Rodrigo Maia quem
desempenhou o papel de líder de uma coalizão legislativa; no segundo (após
acordo de Bolsonaro com o Centrão) foi Arthur Lira a despenhar tal função.
Embora o primeiro fosse um desafeto do presidente e o segundo um aliado, ambos
ocuparam o vácuo de poder deixado pela abdicação presidencial de capitanear o
presidencialismo de coalizão. Isso deu origem a um “governo congressual”,
confundido com uma espécie de “parlamentarismo branco”.
Com o reforço advindo do orçamento secreto
(ele próprio produto do esvaziamento do poder do presidente da República) Lira
não só ocupou o espaço deixado pelo chefe de governo, mas se empoderou,
tornando-se chefe inconteste da Câmara dos Deputados. Por essa razão e também
graças ao aprendizado advindo do trauma causado por Eduardo Cunha, Lula e seu
partido optaram por não o enfrentar, compondo-se com ele.
Apesar dessa centralidade da presidência da
Câmara, foi o comando do Senado que ganhou mais visibilidade na disputa deste
ano. A razão disso também está na Praça dos Três Poderes, vilipendiada por
vândalos bolsonaristas. Não diz respeito, porém, ao Executivo, mas ao
Judiciário. Se é na Câmara que se iniciam pedidos de impeachment do chefe do
Executivo, é no Senado que podem ocorrer impedimentos de ministros do Supremo
Tribunal Federal. E era isso, principalmente, o que estava em jogo.
Em seu discurso antes da votação, Rogério
Marinho deixou claro que seu maior inimigo institucional - como de todo
bolsonarismo - é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. Além de freios postos
às invectivas inconstitucionais do governo Bolsonaro (como durante a pandemia,
no conflito com governos subnacionais), o STF tem sido o principal bastião de
resistência ao ataque bolsonarista à democracia, seja na disseminação de
desinformação de caráter golpista, seja no ataque direto às instituições do
Estado de direito - como se viu na intentona de 8 de janeiro. Por isso, o
solapamento dos freios e contrapesos judiciais é fator crucial no projeto
autoritário bolsonaresco, de que Marinho é operador.
Causa espécie, contudo, que o rival do
bolsonarismo nesse caso tenha sido justamente Rodrigo Pacheco, político
invertebrado, sempre se amoldando às conveniências do momento e colaboracionista
frequente do bolsonarismo - como na tentativa de impedir a instalação da CPI da
Pandemia no Senado. Porém, diante da ameaça representada por um bolsonarista
autêntico (embora de fala suave), Pacheco se tornou a única alternativa viável
aos que se preocupavam com os riscos para a democracia. E, de fato, desde o
segundo turno da eleição presidencial o presidente do Senado se comportou de
forma condizente com a democracia, defendendo o resultado das urnas e se
postando contra ataques autoritários perpetrados pelo bolsonarismo.
Esse enredo deixa clara a importância da
atuação das lideranças institucionais na defesa do regime democrático, pois as
instituições não são autômatos que operam a despeito das decisões das pessoas
que as compõem e, especialmente, de suas lideranças organizacionais. A despeito
de erros, omissões ou até mesmo excessos, a atuação de Alexandre de Moraes e
Rodrigo Maia foi crucial na contenção das invectivas autoritárias do
bolsonarismo. Até mesmo Pacheco, de forma menos incisiva, teve momentos
positivos nessa resistência à fronda autoritária.
Por outro lado, a cumplicidade de Augusto
Aras, um procurador-geral da República que atuou como lugar-tenente do
bolsonarismo, e o perigo representado por Kassio Nunes Marques e André Mendonça
no STF (os 20% de Bolsonaro na corte, como ele próprio disse) mostram como a
contraofensiva de outros integrantes do sistema de justiça foi fundamental para
preservar o regime democrático. Instituições importam, indivíduos também.
*Cláudio Gonçalves Couto é
cientista político, professor da FGV-SP
Excelente análise! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!
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