quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Cláudio Gonçalves Couto* - Instituições importam, indivíduos idem

Valor Econômico

Disputa pelo Senado é exemplo de que instituições importam, mas dependem das lideranças que as fazem funcionar

A eleição para as duas Casas do Congresso, neste início de legislatura, mobilizou a atenção pública como poucas vezes visto antes na nossa história democrática - principalmente no caso da disputa para o Senado.

Decerto, a presidência das duas casas é importante para governos em virtude do poder de agenda detido por quem as chefia. No caso da Câmara, isso é particularmente relevante porque todas as propostas legislativas do Executivo iniciam sua tramitação por ela. Assim, se quem dirige a Casa é antagonista do chefe do Executivo, pode impor obstáculos significativos à apreciação de sua pauta.

Ademais, como hoje se sabe bem, o comandante da Câmara detém um poder especial: permitir o avanço ou engavetar pedidos de impeachment contra o presidente da República. Segundo o jurista Rafael Maffei, autor do livro “Como remover um presidente: teoria, história e prática do impeachment no Brasil”, tal poder discricionário decorre de uma prática, não da letra fria da lei. Contudo, importou para o impedimento de Dilma Rousseff e para que hibernassem todas as ações contra Jair Bolsonaro.

A atuação recente de presidentes das duas Casas do Congresso ganhou destaque devido às conjunturas políticas incendiárias vividas pelo país. Com Eduardo Cunha, exímio manejador do regimento, o destaque adveio não só do grande apoio que amealhou na Câmara e de proverbial habilidade política, mas principalmente de seu estilo predatório. Além do seguimento dado ao impeachment de Dilma (retaliação contra o apoio do PT a investigações sobre si na Comissão de Ética), foi responsável por uma “pauta-bomba” capaz de infligir danos não só ao governo, mas ao próprio país. A predação lhe custou caro: acabou afastado da presidência pelo STF e mandado para o xilindró.

Durante o governo Bolsonaro, novamente a presidência da Câmara ganhou importância - mais por demérito do chefe do Executivo do que por brilhantismo dos comandantes da casa. Bolsonaro abdicou da condição de líder e articulador de uma coalizão congressual, deixando para lideranças legislativas tal papel. Isso foi verbalizado diversas vezes quando, após enviar propostas ao legislativo, Bolsonaro afirmava não ser mais problema seu, pois a bola estaria com o Congresso.

No primeiro biênio foi Rodrigo Maia quem desempenhou o papel de líder de uma coalizão legislativa; no segundo (após acordo de Bolsonaro com o Centrão) foi Arthur Lira a despenhar tal função. Embora o primeiro fosse um desafeto do presidente e o segundo um aliado, ambos ocuparam o vácuo de poder deixado pela abdicação presidencial de capitanear o presidencialismo de coalizão. Isso deu origem a um “governo congressual”, confundido com uma espécie de “parlamentarismo branco”.

Com o reforço advindo do orçamento secreto (ele próprio produto do esvaziamento do poder do presidente da República) Lira não só ocupou o espaço deixado pelo chefe de governo, mas se empoderou, tornando-se chefe inconteste da Câmara dos Deputados. Por essa razão e também graças ao aprendizado advindo do trauma causado por Eduardo Cunha, Lula e seu partido optaram por não o enfrentar, compondo-se com ele.

Apesar dessa centralidade da presidência da Câmara, foi o comando do Senado que ganhou mais visibilidade na disputa deste ano. A razão disso também está na Praça dos Três Poderes, vilipendiada por vândalos bolsonaristas. Não diz respeito, porém, ao Executivo, mas ao Judiciário. Se é na Câmara que se iniciam pedidos de impeachment do chefe do Executivo, é no Senado que podem ocorrer impedimentos de ministros do Supremo Tribunal Federal. E era isso, principalmente, o que estava em jogo.

Em seu discurso antes da votação, Rogério Marinho deixou claro que seu maior inimigo institucional - como de todo bolsonarismo - é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. Além de freios postos às invectivas inconstitucionais do governo Bolsonaro (como durante a pandemia, no conflito com governos subnacionais), o STF tem sido o principal bastião de resistência ao ataque bolsonarista à democracia, seja na disseminação de desinformação de caráter golpista, seja no ataque direto às instituições do Estado de direito - como se viu na intentona de 8 de janeiro. Por isso, o solapamento dos freios e contrapesos judiciais é fator crucial no projeto autoritário bolsonaresco, de que Marinho é operador.

Causa espécie, contudo, que o rival do bolsonarismo nesse caso tenha sido justamente Rodrigo Pacheco, político invertebrado, sempre se amoldando às conveniências do momento e colaboracionista frequente do bolsonarismo - como na tentativa de impedir a instalação da CPI da Pandemia no Senado. Porém, diante da ameaça representada por um bolsonarista autêntico (embora de fala suave), Pacheco se tornou a única alternativa viável aos que se preocupavam com os riscos para a democracia. E, de fato, desde o segundo turno da eleição presidencial o presidente do Senado se comportou de forma condizente com a democracia, defendendo o resultado das urnas e se postando contra ataques autoritários perpetrados pelo bolsonarismo.

Esse enredo deixa clara a importância da atuação das lideranças institucionais na defesa do regime democrático, pois as instituições não são autômatos que operam a despeito das decisões das pessoas que as compõem e, especialmente, de suas lideranças organizacionais. A despeito de erros, omissões ou até mesmo excessos, a atuação de Alexandre de Moraes e Rodrigo Maia foi crucial na contenção das invectivas autoritárias do bolsonarismo. Até mesmo Pacheco, de forma menos incisiva, teve momentos positivos nessa resistência à fronda autoritária.

Por outro lado, a cumplicidade de Augusto Aras, um procurador-geral da República que atuou como lugar-tenente do bolsonarismo, e o perigo representado por Kassio Nunes Marques e André Mendonça no STF (os 20% de Bolsonaro na corte, como ele próprio disse) mostram como a contraofensiva de outros integrantes do sistema de justiça foi fundamental para preservar o regime democrático. Instituições importam, indivíduos também.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

Um comentário:

  1. Anônimo2/2/23 12:54

    Excelente análise! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!

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