sábado, 11 de fevereiro de 2023

Eduardo Affonso - Eu, máquina de escrever sozinha

O Globo

A I.A. se encarrega de encadear assuntos e preparar um rascunho. Adeus, angústia diante da tela em branco

Todo avanço tecnológico implica uma reação de igual intensidade, em sentido contrário, por parte de quem acha que perderá o ganha-pão. Foi assim que os acendedores de lampiões receberam a chegada da luz elétrica. Ou que os fabricantes de ficha telefônica viram o advento do celular. Com a inteligência artificial não havia por que ser diferente.

O que acontece a um escritor quando aparece uma “máquina de escrever” que, diferentemente das Remingtons e Olivettis da nossa juventude, escreve sozinha? E — o que é pior — escreve em segundos, de forma articulada, sem a autoexigência de ser (ou parecer) original e sem erros de português? O mesmo que em qualquer luto: negação, revolta, barganha, depressão e — ufa! — aceitação.

A negação se manifesta com aquele olhar de raposa para o cacho de uvas: o texto da “máquina de escrever” não tem alma. (Ateus tampouco têm alma, nem por isso deixam de produzir arte.) Ok, é de outra alma que se trata, mas igualmente metafórica: ela virá a seu tempo, com a consciência.

Imaginar que os modelos de aprendizado de máquina avancem em progressão aritmética e com alcance limitado é ver Ícaro despencando das nuvens, com as asas pingando cera, daí supor que o ser humano jamais chegará à Lua — ou, chegando à Lua, não alcance galáxias.

A revolta já ocorre em várias frentes. O algoritmo embutiria interesses escusos (o que mais se poderia esperar de uma cria do capitalismo?). Por ter sido abastecido com textos (incluindo conversas) disponíveis na internet, tenderia a perpetuar os vieses misógino, racista, homofóbico, demofóbico etc. da nossa cultura patriarcal, eurocêntrica etc. O ChatGPT privilegia a norma padrão da língua — mas pode vir a ser programado para se expressar em linguagem neutra (e virar um ChatLGPTQIA+, por que não?).

Barganhamos os anéis para preservar, ainda, dedos, mãos e braços. A tecnologia pode ser usada no trabalho pesado: resumos, pesquisas, análise de dados. Para criar questionários, preencher formulários, redigir e-mails, documentos burocráticos. Ou (e aqui começa a zona cinzenta) o esboço de textos autorais. Dadas as palavras-chave, a I.A. se encarrega de encadear assuntos e preparar um rascunho. Adeus, angústia diante da tela em branco.

“Depressão” talvez pareça forte demais para o estágio seguinte, mas nem tanto: os textos made in I.A. podem até não ter alma, mas... que corpo! A linguagem é clara (clareza é dom de poucos, já que é comum confundir complicação com complexidade). A sequência é lógica (aborrecidamente lógica para quem considera anacolutos, hipérbatos, prolepses e analepses o máximo de sofisticação). As referências são múltiplas. O tom é sereno. Se não causar depressão, dá inveja. O produto não é indicado para uso em palanques ou blogues progressistas (aí o que se recomenda é o gerador de lero-lero). Mas não fará feio em obituários, horóscopos, notas de esclarecimento, petições iniciais, memoriais descritivos.

Por fim, hão de vir a serenidade na aceitação do que os modelos de linguagem fazem melhor que nós, coragem para desprezar o óbvio (e investir no que precisa de personalidade, também conhecida como “alma”) e sabedoria para distinguir uma coisa da outra.

(O ChatGPT informou que não há relação entre modelos de linguagem e as cinco etapas do luto. Pelo jeito, não conhece tão a fundo os escritores.)

 

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