Por Thayz Guimarães / O Globo
À medida que as democracias recuam e os
cidadãos se tornam mais polarizados, as guerras civis se tornarão ainda mais
generalizadas e durarão mais do que no passado. Esta é a premissa do novo livro
da cientista política Barbara Walter, “Como as guerras civis começam — e como
impedi-las” (Zahar), que vem sendo comparado pela crítica ao best-seller
“Como as democracias morrem”, de Daniel Ziblatt e Steven Levitsky.
Em entrevista ao GLOBO, Walter, que é professora de Assuntos Internacionais na Escola de Política e Estratégia Global da Universidade da Califórnia e uma referência internacional nos estudos sobre violência política e terrorismo, falou sobre o declínio das democracias em todo o mundo, mídias sociais, algoritmos, ascenção da extrema direita, Donald Trump, Jair Bolsonaro e a cartilha seguida por eles, e também indicou caminhos para as sociedades fugirem das armadilhas antidemocráticas.
No livro, a senhora diz que desde 2010 o
mundo tem visto mais países descerem a escada da democracia do que subi-la,
mesmo democracias tidas como consolidadas. Por que isto acontece agora?
A resposta curta é que não sabemos. A
resposta longa é que temos alguns palpites muito fortes. Um deles é que o
declínio da democracia coincidiu com a ascensão das mídias sociais não
regulamentadas e dos algoritmos que as grandes empresas de tecnologia
projetaram para manter as pessoas tão engajadas quanto possível em seus
celulares e laptops. E eles perceberam que o material que os mantém engajados
por mais tempo é o material mais incendiário, que joga com o sentimento de
medo, ameaça, raiva e ódio das pessoas, todas as emoções negativas. Portanto,
isso parece estar tendo uma série de grandes efeitos sociais.
Poderia dar um exemplo?
Estamos vendo sociedades cada vez mais
divididas entre si, seja sobre questões como o Vidas Negras
Importam aqui nos EUA, seja sobre vacinas ou qualquer outra coisa.
Os algoritmos permitem que as pessoas que querem tirar partido dessas questões
joguem com elas e polarizem ainda mais as pessoas. Suspeitamos que os
algoritmos também estão levando ao surgimento do nacionalismo étnico: se você
divulga informações que deixam as pessoas com medo e com raiva, se sentindo
ameaçadas, muitas vezes, o medo do outro, que joga com o medo dos imigrantes,
entra em ação. Vemos isso na Alemanha, nos EUA, no Brasil, em todo lugar.
Líderes ocidentais costumam se referir aos
extremistas como uma minoria ruidosa. Eles são realmente uma minoria?
Se você olhar para os grupos de milícias
nos EUA, há alguns à esquerda, a grande maioria está à direita, cerca de 65%
deles são grupos de supremacia branca e cerca de 25% são grupos contra o
governo federal. Eles são absolutamente minoria, mas estão crescendo.
Por que democracias regridem?
Muitas vezes, as regressões ocorrem em
períodos de mudança e insegurança, quando os cidadãos começam a se sentir
inseguros sobre o futuro diante de uma crise econômica ou política, por
exemplo. Nesses momentos, não raro um autocrata surgirá para tentar
tranquilizá-los. Slobodan Milosevic fez isso quando a [República Federal da]
Iugoslávia [formada por Sérvia e Mointenegro] de repente se tornou
independente. Ele dizia que o momento era perigoso [uma série de
conflitos étnicos que levou à desintegração da República Socialista Federativa
da Iugoslávia nos anos 1990], que a população sérvia precisava de um
líder forte para protegê-la e garantir seu lugar no poder. Em cenários de
incerteza, os cidadãos tendem a trocar liberdade por segurança.
De quanto tempo estamos falando quando
falamos sobre declínio das democracias?
No século XX, a maioria das democracias que
voltaram a ser autocracias o fizeram por meio de golpes militares. Foi o que
aconteceu na Espanha e em muitos países latino-americanos. Quando isso
acontece, a mudança é imediata, praticamente de um dia para o outro. Hoje, essa
transição é mais lenta e diferente. É o que chamo de “efeito
Orbán” [em referência ao primeiro-ministro da Hungria, Viktor
Orbán]. Políticos populares participam de eleições reais, se elegem legitimamente
e, uma vez no poder, começam a se livrar das limitações ao seu próprio poder
por meios legais. São mudanças realizadas no longo prazo que parecem pequenas,
insignificantes. Os cidadãos muitas vezes não entendem as implicações disso se
um líder estiver gerando crescimento econômico para o país durante esse
período. Orbán, basicamente, apresentou o manual para outros aspirantes a
ditadores como Bolsonaro e Trump.
O ataque às sedes dos três Poderes em
Brasília tem sido comparado à invasão do Capitólio. O que a democracia
brasileira pode aprender com o exemplo dos EUA?
Os cidadãos precisam se envolver, não podem
ficar à parte e esperar que a democracia sobreviva sozinha. Nos EUA, os
americanos só agora estão começando a perceber que, se não prestarem atenção,
se não se mantiverem informados sobre o que está acontecendo, se não saírem
para votar, os extremistas vão capturar o governo e acabar com a democracia.
Vimos na Primavera Árabe o poder e a eficácia de protestos maciços
mesmo contra líderes armados e fortes. Precisamos de uma sociedade civil forte,
de cidadãos engajados e atentos ao que os políticos estão fazendo para a
democracia sobreviver.
Bolsonaro recebeu mais de 58 milhões de
votos no 2º turno, e muitas dessas pessoas acreditam que as eleições foram
roubadas…
Novamente, essas coisas tendem a acontecer
em tempos de transição. Aqui nos EUA, os brancos estão se tornando uma minoria
da população, e há uma parcela desse grupo que se sente enormemente ameaçada
por isso, porque consideram que é um direito dado por Deus aos EUA rural. O
Brasil está passando por uma mudança demográfica semelhante: onde os brancos
eram maioria, eles não são mais. É uma mudança muito recente, e Bolsonaro joga
diretamente com esse medo e essa sensação de que os brancos merecem governar no
Brasil. É um sentimento poderoso que as pessoas têm se acreditarem que um país
é deles por direito, elas serão motivadas a tomar as medidas necessárias para
manter o controle.
As democracias estão fadadas a ciclos de
instabilidade?
Se uma democracia for bem desenhada, não
precisa ser assim. Se as instituições forem fortes, se houver muitos pesos e
contrapesos contra o Executivo, se houver uma sociedade civil forte, haverá
também uma comunidade empresarial saudável. Pense na Dinamarca e em alguns dos
sistemas parlamentares da Europa Ocidental. O problema é que, se suas
instituições são fracas, ou permitiram que se tornassem mais fracas, é possível
que as corporações e o dinheiro comecem a corromper o sistema, como está
acontecendo nos EUA. Sempre haverá indivíduos como Trump e Bolsonaro para
explorar e tirar proveito disso. Mas eles não terão sucesso se houver
restrições na sociedade, nos negócios e no governo para tornar impossível a
tomada do poder.
Depois de Trump, os EUA ainda são uma
democracia?
Os EUA caíram em uma zona intermediária
[entre a democracia e a autocracia] chamada anocracia durante o governo Trump.
Isso melhorou desde então, voltamos à zona da democracia, mas ainda não está
perfeito. Temos um novo presidente que respeita o Estado de Direito, acredita
na democracia e que se perder a próxima eleição, transferirá o poder
pacificamente. Mas as nossas instituições não foram reformadas e fortalecidas.
As mesmas vulnerabilidades
de antes continuam existindo, então podemos retroceder rapidamente
mais uma vez.
Existe risco de guerra civil?
Não creio, mas sabemos que o risco de guerra civil onde políticos se organizam em torno de raça, religião ou etnia cresce em torno de 4% ao ano se as reformas necessárias não forem feitas. Parece pouco, mas não é. Em 10 anos, seu risco será de 40%; em 20 anos, de 80%. Os EUA têm tempo para mudar algumas características realmente antidemocráticas, como o sistema de votos e a regra de obstrução [em votações no Congresso], mas essas mudanças precisam ser feitas.
Notei que para Barbara Walters existe um sujeito social importante quando a democracia está em jogo: os negócios, a comunidade empresarial e as corporações golpistas.
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