Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Conselho da Federação pode ser canal para
experimentar uma forma de governar que saia tanto do belicismo bolsonarista
como dos conchavos patrimonialistas
A palavra federal deriva do latim foedus,
que significa pacto. Foi esse sentido que guiou a criação, em maior ou menor
medida, de boa parte das federações que nasceram como uma forma de distribuir o
poder político territorial, mas também de salvaguardar a diversidade
sociocultural dessas nações. O Brasil republicano optou pelo federalismo, mas
na maior parte do tempo não conseguiu transformar a pactuação no estilo
predominante de se governar o país. A reunião entre os governadores e o
presidente Lula gerou a proposta de se criar um Conselho da Federação,
instituição que pode incentivar e fortalecer uma lógica mais pactual de
governança.
Não se pode confundir a ideia de pactuação
com conciliação, que muitas vezes imperou na história brasileira. Conciliar,
aqui, significou evitar o conflito e, geralmente, a cooptação de parte dos
parceiros por elites que concentravam o poder. Um pacto democrático, ao
contrário, supõe alianças que não tirem os direitos e identidades dos
pactuantes. Esse é o sentido almejado pelo federalismo: criar uma nação que
depende da interdependência das partes territoriais, mas que seja capaz de
garantir a diversidade e a autonomia dos entes federativos.
Essa discussão é estratégica para o sucesso do governo Lula e, muito mais importante, para a reconstrução do Brasil, após a tragédia do bolsonarismo. A centralidade dessa questão se deve a dois fatores. Um é a força da polarização e da fragmentação no sistema político atual. E o outro tem a ver com o fato de o federalismo ser um dos principais eixos organizadores do Estado brasileiro.
Será muito difícil construir um futuro
melhor se o Brasil não sair da dupla lógica que impera atualmente. Ou o jogo
político é moldado por um comportamento e um discurso polarizadores, de um modo
que não abre nenhum espaço para a negociação e o compromisso entre os
divergentes, chegando-se ao ponto de a aniquilação do outro ser o objetivo de
certos atores, como crê o bolsonarismo; ou então há o predomínio da
fragmentação de interesses políticos e econômicos, cada qual buscando
privilégios e um quinhão do orçamento e da administração pública, sem se
preocupar com o efeito coletivo dessa barganha centrífuga e particularista.
Reconstruir a governança do país é fugir
destas duas lógicas. Claro que o modelo polarizador é o mais perverso, visto
que coloca em questão a democracia e o sentido de pertencimento dos diferentes
a uma mesma nação. É preciso vencer essa polarização nutrida pelo ódio que o
bolsonarismo espalhou entre políticos e, pior, para parcela da população
brasileira. Só que também é fundamental encontrar uma outra forma de construir
consensos e compromissos políticos para garantir que os pactos, discutidos às
claras e respeitosos com todas as partes, possam guiar o sistema político.
O Conselho da Federação pode ser um canal
especial para experimentar uma forma mais pactuada de governar, saindo tanto do
belicismo bolsonarista como dos conchavos patrimonialistas. Mais do que isso,
pode também ter um papel mais específico e extremamente estratégico: ajudar na
resolução dos problemas brasileiros que dependem de maior coordenação e
cooperação entre a União, os estados e os municípios. Houve muitas melhorias no
federalismo brasileiro a partir da Constituição de 1988, gerando estruturas
bem-sucedidas na criação de um amplo Estado de Bem-Estar Social, como é o caso
da experiência do SUS. É verdade que ainda havia fragilidades e dificuldades
nas relações intergovernamentais que impediam maiores avanços, mas o caminho em
prol da cooperação parecia ser o mais adequado.
Tal trajetória positiva foi destruída pelo
governo Bolsonaro. Ele vendeu a ilusão do slogan Mais Brasil, Menos Brasília e
entregou, de fato, o abandono e o confronto com os estados e municípios, aumentando
a desigualdade territorial no país sem deixar de se guiar por uma sanha
centralizadora típica de uma autocracia unitária. Destruir a lógica pactuada do
federalismo foi um maiores desastres produzidos pelo bolsonarismo, pois isso
teve efeitos múltiplos na qualidade de vida do brasileiro e no funcionamento da
democracia.
Aumentar o sentido pactuado do federalismo
é uma das soluções para a crise atual. Neste sentido, é preciso pensar a
estrutura federativa como a coluna vertebral do Estado brasileiro, cuja
resolução não está no embate centralização versus descentralização. A chave
certa para aprimorar a Federação está na ampliação da coordenação e cooperação
entre os entes federativos, garantindo tanto o sentido nacional do processo
como a autonomia e a diversidade dos governos subnacionais.
Alguns exemplos estratégicos revelam como a
Federação é uma peça-chave para a reconstrução país. A educação piorou muito
nos últimos quatro anos por conta do casamento de um desastre natural - a
covid-19 - com um desastre político, o bolsonarismo. Para reverter esse quadro
e garantir o desenvolvimento educacional das crianças e jovens brasileiros,
será fundamental fazer três coisas. A primeira é criar o Sistema Nacional de
Educação para que os entes federativos discutam e escolham as prioridades nas
quais atuarão de forma cooperada nos próximos anos. A segunda é construir
formas colaborativas de fortalecimento das capacidades estatais locais num país
muito desigual, por meio de ações do MEC para o território nacional e dos
governos estaduais junto aos seus municípios, estabelecendo as condições para a
implementação de projetos estruturantes, como a escola de tempo integral, a
reforma curricular da educação básica e o aprimoramento das carreiras do
magistério. Por fim, deve-se estimular o debate e a disseminação de boas
práticas entre estados, municipalidades e arranjos intermunicipais.
Constata-se, assim, que o fortalecimento
das formas pactuantes presentes no federalismo é a maior força motriz em prol
da melhoria da educação brasileira. O mesmo ocorre em outros temas, como a
política socioambiental na região amazônica, uma vez que o governo federal
precisará dos estados e municípios para garantir a sustentabilidade e um novo
padrão de desenvolvimento - e aqui a reconstrução do Conselho da Amazônia será
fundamental. Linha similar de raciocínio pode ser usada em todas as políticas
sociais, muito dependentes do federalismo cooperativo para seu sucesso, e para
garantir a própria democracia. Os três Poderes federais foram estratégicos para
evitar o golpe bolsonarista, mas a consolidação do regime democrático precisará
do apoio local - dos cidadãos e dos políticos. Ressalte-se que governadores e
deputados estaduais, bem como prefeitos e vereadores, são duplas essenciais para
garantir o Estado de Direito, numa trajetória que abarca os rincões e as áreas
metropolitanas antes de chegar a Brasília.
Apostar no Conselho da Federação como um
articulador estratégico de um amplo modelo pactuado envolve levar em conta
cinco fatores. Primeiro, há outras estruturas federativas prévias que não podem
ser substituídas pela nova instituição, como os sistemas nacionais de políticas
públicas e os consórcios públicos, de modo que será preciso aprender com as
experiências já existentes e articulá-las com o Conselho da Federação. Uma
única estrutura não é adequada para lidar com o mosaico de interesses, direitos
e desafios ligados ao Estado brasileiro.
Em segundo lugar, o Conselho da Federação
precisa efetivamente ser estruturado por uma lógica pactual. Assim, o correto é
ter a participação plena de todos os níveis de governo nesta concertação
federativa, garantindo salvaguardas aos governos subnacionais, que precisam ter
mecanismos para defender seus direitos. Qualquer centralização indevida ou pulverização
decisória dará errado. O modelo de pacto tem mais chances de respeitar as
peculiaridades locais e disseminar boas experiências dos governos estaduais e
municipais.
Deve ser levada em consideração, em
terceiro lugar, a experiência de outros países federativos, não para copiá-los,
mas para construir um mapa dos caminhos virtuosos e dos maiores desafios e
limites desse modelo institucional. Uma perspectiva internacional não reduz a
necessidade de ouvir os atores estratégicos locais. E aqui, como quarto
elemento, vale não só incluir a experiência e as demandas dos entes
federativos, como ainda é essencial incluir o Congresso Nacional nesta
empreitada. De alguma maneira, seria muito interessante a participação
institucional do Legislativo no Conselho da Federação, mesmo que com um status
diferenciado dos estados e municípios. Seria uma forma de começar a mudar a
lógica do orçamento fragmentado e clientelista em direção a uma outra forma de
diálogo e participação legítima dos congressistas na distribuição de recursos
federais.
Um último desafio deve ser colocado: é
essencial que o Conselho da Federação tenha empoderamento político e um modelo
de gestão que oriente a pactuação por meio de metas, indicadores, estímulos ao
desempenho e formas de apoio aos governos subnacionais que tiverem mais
problemas. O pacto só se consolidará caso todos os pactuantes, mesmo que em
condições assimétricas, se sintam participantes e beneficiados pela cooperação.
Dada a amplitude de questões que poderão ser atingidas pela decisões do
Conselho da Federação, seu sucesso pode ser um caminho para a reconstrução do
país e de nossa democracia.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Excelente análise e proposta de uma nação federativa.
ResponderExcluirÉ um alívio saber que o país pode dar certo.
Grato ao articulista e ao blog que divulgam análise de qualidade