O Estado de S. Paulo
Será difícil enfrentar uma direita digital com reflexos analógicos. E mais difícil ainda se houver subestimação e um olhar fixado só nos seus aspectos folclóricos
As invasões golpistas do Congresso
Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF) já foram
intensamente condenadas. No entanto, passado quase um mês, a sensação que tenho
é de que foram pobremente analisadas.
Para dizer a verdade, a tentativa de golpe
foi um fracasso, o esquema de segurança foi um fracasso, mas a interpretação
não precisa também ser um fracasso.
Poucos se aventuraram a explicar por que os
invasores foram a Brasília. A revista Crusoé contou uma história interessante:
uma lavradora paranaense, com uma baixa renda mensal, participou da
manifestação porque tinha medo de que o comunismo levasse um trator que ganhou
de herança, sua única posse.
Por sugestão de Michele Prado, tenho lido, entre outros, uma autora americana que criou um laboratório para pesquisar a extrema direita, Cynthia Miller-Idriss. Como estão mais adiantados nas pesquisas, estou aprendendo muito, sempre preocupado com não aplicar mecanicamente o aprendizado no exame da extrema direita brasileira.
Lá, o medo de perder algo está relacionado
com a presença dos trabalhadores estrangeiros. Há o medo de perder o emprego,
de perder a cultura e até de perder o país, tornando-se uma minoria dominada.
Aqui, este medo de perder algo para
estrangeiros quase não existe. A falta de habilidade do governo Lula ao
anunciar investimentos no exterior abriu um flanco para a exploração da extrema
direita. Como se trata apenas de um anúncio, sem explicar os ganhos que o
Brasil poderia ter, voltam os velhos argumentos: o metrô de Belo Horizonte foi
substituído pelo metrô de Caracas.
Pelo que observei em entrevistas e
discursos populares na campanha, o medo mais forte no Brasil é o de perder algo
para o comunismo: um trator, um carro Celta, um pedaço do próprio apartamento.
A extrema direita não trabalha apenas com
emoções negativas, como a de perder algo, ou mesmo abrir mão de seus direitos
para um povo estrangeiro. Ela explora o pertencimento a um espaço pátrio, aos
símbolos nacionais, e transmite às pessoas a sensação de que devem lutar por
algo mais alto: a sobrevivência do Brasil e o futuro de filhos e netos.
Ainda no prefácio de um de seus livros,
Hate in the Homeland, Cynthia Miller assinala um fator que nunca foi muito
estudado: o papel da pandemia na vulnerabilidade das pessoas às teses
extremistas. De fato, foi um período de medo, ansiedade, depressão e,
sobretudo, isolamento, de sobrevivência nas bolhas da internet.
Graças a um amigo, acompanhei a trajetória
de uma presa, por meio do histórico de suas postagens no Instagram. A cada nova
manifestação, ela parece mais certa da vitória final de sua luta. Era
admiradora de Bolsonaro e, na campanha, mandava mensagens desesperadas para
ele: Bolsonaro, por favor, não perca as eleições.
Depois da derrota, seguiu enrolada na
bandeira do Brasil e dizia nas suas peregrinações: sei que estou deixando
família para trás, muitas coisas, mas sei também que isto tudo é muito maior, é
a salvação do Brasil.
De fato, deixou tudo para trás, marido,
filho, os bichos de que cuidava nas ruas de uma pequena cidade mineira, e hoje
está presa na Colmeia com uma centena de mulheres.
Alexandre de Moraes foi muito elogiado pela
sua resposta enérgica. Assim agem os magistrados, dizem. Mas há questões que,
às vezes, são complicadas para magistrados. São questões políticas, como esta
de prender no mesmo espaço gente com treinamento militar para o golpe e alguns
que vieram apenas porque ganharam uma viagem grátis.
Segundo a experiência histórica, as prisões
são um excelente espaço de doutrinação. O mais inteligente, apesar de levemente
mais caro, seria enviar a maioria para os seus Estados de origem.
Mas uma decisão desse tipo nasce de
estratégias para enfraquecer a extrema direita. A ideia que o governo passa é
de que entrou numa zona de conforto, em que qualquer desgaste é permitido por
uma boa frase de efeito.
Moeda comum com a Argentina, sem preparação
dos espíritos, afirmação de que o impeachment de Dilma foi um golpe – tudo isso
fornece munição desnecessária para uma extrema direita que já dispõe, por
vocação, de um imenso arsenal de fake news.
A presunção de que ficaram totalmente
desarticulados depois da tentativa de golpe não se sustenta. O debate nas redes
sociais continua intenso. A extrema direita conseguiu mobilizar milhares de
pessoas para a campanha no Senado, na defesa da candidatura de Rogério Marinho,
que, por sua vez, promete enfrentar o Supremo Tribunal Federal.
As eleições de 2026 parecem muito
distantes. Mas não estão. No passado, todos se acalmavam e voltavam ao assunto
no ano eleitoral. Agora, há disputa, cada passo tem de ser medido num outro
padrão: quem se fortalece, quem se enfraquece para a luta decisiva.
Será muito difícil, creio, enfrentar uma direita digital com reflexos analógicos. Mas isso até é secundário. Será mais difícil ainda se houver subestimação e um olhar apenas fixado nos aspectos folclóricos da extrema direita. É um movimento social e conhecê-lo melhor é um imperativo de nossos tempos.
Excelente análise do Gabeira! Parabéns a ele e ao blog que divulgou seu texto! Uma pequena discordância: na frase "prender no mesmo espaço gente com treinamento militar para o golpe e alguns que vieram apenas porque ganharam uma viagem grátis." penso que poderia ser mais preciso:
ResponderExcluirprender no mesmo espaço ALGUNS com treinamento militar para o golpe e MUITOS que vieram apenas porque ganharam uma viagem grátis.
É lógico que alguns manifestantes poderiam ter treinamento militar (especialmente os que enfrentaram e atacaram policiais), mas isto é pouco visível nas imagens, e praticamente não havia lideranças evidentes, os vândalos pareciam mais moscas tontas que gente tendo algum tipo de treinamento ou organização.
Gabeira é danado.
ResponderExcluirExcelente, Gabeira foi no ponto. O governo e principalmente o atual presidente precisa falar menos e pensar antes de falar não está fazendo comício em frente de fábrica mas governando uma nação em profunda crise. Nunca mais se deve usar a maldita frase:”nós contra eles”, a origem de tudo que aconteceu desde 2018.
ResponderExcluirJá erra em classificar de “golpistas” as invasões sem discorrer sobre as causas que são milhares de vezes piores do que as invasões, fossem aquelas causas decorrentes sobre ele Gabeira ou seu jornaleco em decorrência de opiniões explanadas estaria ele querendo jogar um artefato nuclear sobre os prédios
ResponderExcluirÉ o famoso “pimenta no cú dos outros é refresco” ou em termos mais sinceros falta de caráter para entender que uma transgressão à lei, a constituição ou a democracia são graves não interessando quem seja atingido.
Essa é a moral da esquerda: a lei muda dependendo de quem é atingido e isso é inadmissível, “todos são iguais perante a lei” e a esquerda NÃO ACEITA ISSO, Lula é inocente assim como José Dirceu e todos os outros e Bolsonaro e todos da direita são golpistas, genocidas, fascistas e segundo o Geraldo sexistas independente do conceito de cada coisa ou do que tenham feito.
Hoje o Gabeira não passa de mais um estúpido no Brasil
As intenções GOLPISTAS de centenas dos invasores eram óbvias, explicitadas por eles em vídeos, faixas, entrevistas e outros tipos de confissões! Tomar o poder, provocar um golpe ou uma intervenção militar, etc., etc. Não há qualquer erro em classificar tais invasões como GOLPISTAS! O anônimo acima deve estar delirando...
ResponderExcluirA direita boçaloide não é apenas "digital com reflexos analógicos". E Gabeira está certo quando diz que não se deve subestimar o movimento do boçal e considerar como folclore o lado assassino e terrorista do bolsonarismo. Basta pensar: é engraçado labemtar que os gorilas de 64 não tenham matado 30 mil pessoas "Inclusive FHC"? É engraçado um sujeito ter tentado explodir 60 mil litros de querosene de avião ao lado do aeroporto de Brasília? É engraçado aplicar uma "solução final" hitlerista ao povo ianomâmi?
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