sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

José de Souza Martins* - O triunfo da vítima

Eu & Fim de Semana  / Valor Econômico

O brasileiro que vem ganhando visibilidade tem raízes profundas e sofridas do encontro da pátria consigo mesma contra as fantasias manipuláveis de uma pátria de ficção

A mulher de meia-idade, enrolada na bandeira nacional, filmava com o celular a multidão espalhada pela Praça dos Três Poderes, subindo rampas, invadindo o STF, o Palácio do Planalto. Ela já estava dentro do Senado e berrava ao mundo: “Tomamos o poder!”.

A cena me lembrou um fato ocorrido na Faculdade de Filosofia da USP, em 1962, quando eu era aluno. Havia uma greve estudantil e o prédio fora tomado pelos grevistas. O professor Fernando Henrique Cardoso foi visitar os invasores. Paciente, hábil político e professor do diálogo, perguntou a eles: “Agora, que vocês tomaram o prédio, o que pretendem fazer com ele?”.

Calmamente, deu alguns esclarecimentos: é preciso preparar a folha de pagamentos e providenciar o depósito bancário da verba, pois no dia tal funcionários e professores devem receber seus salários.

Tomar o poder não é invadir recintos do poder. O poder não se confunde com edifícios. Além do que, o poder não se toma. O acesso a ele tem mecanismos legais e legítimos próprios de modo que só se está no poder no cumprimento de uma missão de representação. Sem isso, ninguém toma nada.

No mesmo momento da intentona do dia 8 de janeiro, o novo governo, legitimamente eleito, estava sendo organizado. Ministros já haviam tomado posse. Novos ministros tomariam posse nos dias seguintes.

A estrutura do novo governo brasileiro tornava-se, enfim, estrutura de um governo democrático e o Estado se recompunha com base nos preceitos da civilização. Depois de um vazio de quatro anos, o país à deriva de decisões incompetentes e irresponsáveis, como ficou claro nos erros em relação à covid, finalmente há governo.

Nestes dias tumultuados da história política brasileira, os incidentes, violências e violações têm sido acompanhados de perto por um conjunto de atos e ações de grande significação simbólica, que indicam o declínio do poder do atraso e o advento de uma nova era política.

Estamos em face do fato histórico do triunfo dos simples, do poder novo e alternativo dos que, à margem da história, construíram sua identidade política e as bases sociais de seu protagonismo. Em nome da diversidade de sujeitos e da pluralidade de identidades abrigadas sob a verdadeira identidade de brasileiro.

O que vai mostrando que brasileiro não é, propriamente, quem usa cueca verde-amarela, quem usa a bandeira como cobertor e tapete. O brasileiro que vem ganhando visibilidade tem raízes profundas e sofridas. É ele o protagonista do encontro da pátria consigo mesma contra as fantasias manipuláveis de uma pátria de ficção, que tem um presente enfermo e não tem futuro.

Aqui, as transformações sociais se dão ocultadas pelo caráter lento da história brasileira. Os marcos da transformação demoram para ganhar visibilidade e ter a dimensão institucional que a torne eficaz para que o legítimo se torne legal.

País de contradições, o povo tem mais inimigos do que aliados. No Brasil, o atraso, mesmo o atraso econômico, é lucrativo, mas de uma lucratividade individual e sem futuro social e coletivo.

Os avanços sociais são sempre contidas concessões dos poderosos do atraso. Nunca demos nenhum salto histórico, tolhidos pela trama de interesses e de poderes de um passado persistente e de sua mentalidade tosca e socialmente antagônica.

Em boa parte, o Brasil não é expressão de protagonismos históricos nem realização de incontornáveis possibilidades históricas. O Brasil é uma invenção política feita em nome do estranho, do forasteiro, do ausente, do régulo beneficiário das injustiças sociais. Ainda é um país de povo ausente. Até Deus conspira contra essa possibilidade na política antidemocrática dos púlpitos de aluguel.

A Independência foi uma fantasia dinástica de construção de uma sociedade sem povo, um país inteiro como herança de uma família real. O povo não participou da Independência. A República saiu do bolso do colete dos militares do Exército num golpe contra o próprio republicanismo. Não é casual que, volta e meia, os militares queiram se impor como tutores da pátria, concebida não como sociedade de gente cidadã, mas como sociedade de recrutas de quartel. A maioria da população não cabe nesse delírio.

O povo, propriamente dito, nascido de suas carências e de suas esperanças, chegou, finalmente, ao poder na eleição de 30 de outubro e na posse de 1º de janeiro. Os atos fortemente simbólicos do dia da diplomação e do dia da posse expôs a cara e o coração de uma nação da diversidade e da pluralidade.

Na posse das ministras Sônia Guajajara, dos Povos Indígenas, e Anielle Franco, da Igualdade Racial, a lenta e sofrida luta pelo direito à diferença chegou legitimamente ao poder. O novo governo representa o triunfo da vítima.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

Um comentário:

  1. Anônimo3/2/23 10:40

    Texto interessante. Mas parece ignorar que Lula (e supostamente seu povo) já governou por 8 anos, com bons resultados, e que Dilma (apoiada por algum povo e partidários) também governou por vários anos, com maus resultados. O colunista vê este terceiro mandato de Lula como algo muito diferente do primeiro e segundo?

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