Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O brasileiro que vem ganhando visibilidade
tem raízes profundas e sofridas do encontro da pátria consigo mesma contra as
fantasias manipuláveis de uma pátria de ficção
A mulher de meia-idade, enrolada na
bandeira nacional, filmava com o celular a multidão espalhada pela Praça dos
Três Poderes, subindo rampas, invadindo o STF, o Palácio do Planalto. Ela já
estava dentro do Senado e berrava ao mundo: “Tomamos o poder!”.
A cena me lembrou um fato ocorrido na
Faculdade de Filosofia da USP, em 1962, quando eu era aluno. Havia uma greve
estudantil e o prédio fora tomado pelos grevistas. O professor Fernando
Henrique Cardoso foi visitar os invasores. Paciente, hábil político e professor
do diálogo, perguntou a eles: “Agora, que vocês tomaram o prédio, o que
pretendem fazer com ele?”.
Calmamente, deu alguns esclarecimentos: é
preciso preparar a folha de pagamentos e providenciar o depósito bancário da
verba, pois no dia tal funcionários e professores devem receber seus salários.
Tomar o poder não é invadir recintos do poder. O poder não se confunde com edifícios. Além do que, o poder não se toma. O acesso a ele tem mecanismos legais e legítimos próprios de modo que só se está no poder no cumprimento de uma missão de representação. Sem isso, ninguém toma nada.
No mesmo momento da intentona do dia 8 de
janeiro, o novo governo, legitimamente eleito, estava sendo organizado.
Ministros já haviam tomado posse. Novos ministros tomariam posse nos dias
seguintes.
A estrutura do novo governo brasileiro
tornava-se, enfim, estrutura de um governo democrático e o Estado se recompunha
com base nos preceitos da civilização. Depois de um vazio de quatro anos, o
país à deriva de decisões incompetentes e irresponsáveis, como ficou claro nos
erros em relação à covid, finalmente há governo.
Nestes dias tumultuados da história
política brasileira, os incidentes, violências e violações têm sido
acompanhados de perto por um conjunto de atos e ações de grande significação
simbólica, que indicam o declínio do poder do atraso e o advento de uma nova
era política.
Estamos em face do fato histórico do
triunfo dos simples, do poder novo e alternativo dos que, à margem da história,
construíram sua identidade política e as bases sociais de seu protagonismo. Em
nome da diversidade de sujeitos e da pluralidade de identidades abrigadas sob a
verdadeira identidade de brasileiro.
O que vai mostrando que brasileiro não é,
propriamente, quem usa cueca verde-amarela, quem usa a bandeira como cobertor e
tapete. O brasileiro que vem ganhando visibilidade tem raízes profundas e
sofridas. É ele o protagonista do encontro da pátria consigo mesma contra as
fantasias manipuláveis de uma pátria de ficção, que tem um presente enfermo e
não tem futuro.
Aqui, as transformações sociais se dão
ocultadas pelo caráter lento da história brasileira. Os marcos da transformação
demoram para ganhar visibilidade e ter a dimensão institucional que a torne
eficaz para que o legítimo se torne legal.
País de contradições, o povo tem mais
inimigos do que aliados. No Brasil, o atraso, mesmo o atraso econômico, é
lucrativo, mas de uma lucratividade individual e sem futuro social e coletivo.
Os avanços sociais são sempre contidas
concessões dos poderosos do atraso. Nunca demos nenhum salto histórico,
tolhidos pela trama de interesses e de poderes de um passado persistente e de
sua mentalidade tosca e socialmente antagônica.
Em boa parte, o Brasil não é expressão de
protagonismos históricos nem realização de incontornáveis possibilidades
históricas. O Brasil é uma invenção política feita em nome do estranho, do
forasteiro, do ausente, do régulo beneficiário das injustiças sociais. Ainda é
um país de povo ausente. Até Deus conspira contra essa possibilidade na
política antidemocrática dos púlpitos de aluguel.
A Independência foi uma fantasia dinástica
de construção de uma sociedade sem povo, um país inteiro como herança de uma
família real. O povo não participou da Independência. A República saiu do bolso
do colete dos militares do Exército num golpe contra o próprio republicanismo.
Não é casual que, volta e meia, os militares queiram se impor como tutores da
pátria, concebida não como sociedade de gente cidadã, mas como sociedade de
recrutas de quartel. A maioria da população não cabe nesse delírio.
O povo, propriamente dito, nascido de suas
carências e de suas esperanças, chegou, finalmente, ao poder na eleição de 30
de outubro e na posse de 1º de janeiro. Os atos fortemente simbólicos do dia da
diplomação e do dia da posse expôs a cara e o coração de uma nação da
diversidade e da pluralidade.
Na posse das ministras Sônia Guajajara, dos
Povos Indígenas, e Anielle Franco, da Igualdade Racial, a lenta e sofrida luta
pelo direito à diferença chegou legitimamente ao poder. O novo governo representa
o triunfo da vítima.
*José de Souza Martins é sociólogo.
Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón
Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94).
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de
Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Texto interessante. Mas parece ignorar que Lula (e supostamente seu povo) já governou por 8 anos, com bons resultados, e que Dilma (apoiada por algum povo e partidários) também governou por vários anos, com maus resultados. O colunista vê este terceiro mandato de Lula como algo muito diferente do primeiro e segundo?
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