sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

José de Souza Martins* - A tragédia yanomami

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Não são os indígenas que devem compreender e acatar os brancos. São os brancos que devem compreender os indígenas, reconhecer-lhes o direito à diferença e respeitá-la

Uma tradição, ainda que relutante, de respeito pelos direitos territoriais dos nossos indígenas, desde o período colonial, desde o Diretório dos Índios do Grão Pará e Maranhão, de 1755, foi desconsiderada cada vez mais a partir da economia do regime militar.

Desde que a frente de expansão do café começou a ocupar o “sertão desconhecido” de São Paulo, nas décadas finais do século XIX, bugreiros, profissionais do genocídio, eram pagos para liquidar indígenas, levando como comprovante do “serviço” para os patronos do extermínio os pares de orelhas de suas vítimas. Hoje, mudou o estilo da violência, mas o propósito continua o mesmo: “limpar” o país de seus nativos imemoriais e usurpar-lhes os meios de sobrevivência, a terra e os recursos naturais.

O ideólogo autoidentificado da tragédia imposta aos yanomami é Jair Bolsonaro. Ele deixou um rastro de sua fixação adversa nesse povo brasileiro. Em 1993, deputado federal recente, apresentou projeto para anular decreto de 1992 que homologara a demarcação administrativa da terra Yanomami. O escritor Lira Neto publicou há pouco, no “Diário do Nordeste”, um cuidadoso estudo sobre suas teimosas investidas contra a demarcação daquele território.

Num discurso, em 16 de abril de 1998, publicado no Diário da Câmara dos Deputados, p. 957, afirmou: “... a Cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norteamearicana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país - se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro...”.

Trata-se de uma característica do discurso bolsonarista: a recomendação implícita e a ressalva autoprotetiva do duplo dizer. Fica por conta dos ingênuos úteis a interpretação e a ação decorrentes, como no caso da terra Yanomami e, também, no da intentona de 8 de janeiro.

Num país em que palavra de pastor evangélico, de militar e de político é tomada pelo vulgo como recomendação legítima, e não é, pode-se ver o quanto essa atitude tem a ver com a tragédia de agora. Não só a palavra, mas também os gestos. Caso da visita de Bolsonaro, em 2021, citada por Lira Neto, a um garimpo ilegal, em Roraima, para uma confraternização com os garimpeiros, em terra indígena vizinha ao território yanomami.

Bolsonaro baseia-se na concepção impressionista e antiantropológica de que aqueles índios ocupam o equivalente a duas vezes a extensão do estado do Rio de Janeiro, sendo no entanto menos numerosos do que a população fluminense. A ignorância implícita nesse tipo de discurso não leva em conta que são sociedades antropologicamente diferentes, com visões radicalmente distintas da relação homem-natureza, da relação entre os seres humanos e da própria concepção de destino.

Se essa mentalidade pseudoempresarial fosse correta, empresas não iriam à falência, não precisariam de subsídios do Estado, como os milhões que foram transferidos dos cofres públicos para empresas privadas a partir do regime militar para ocupação econômica da Amazônia.

Os diferentes povos indígenas têm suas próprias e legítimas concepções da vida, do modo de viver e de trabalhar, de proteger a natureza e mesmo de morrer. Na tradição yanomami mais antiga, o funeral é um complicado rito antropofágico, que deve ser cumprido pelos parentes do morto, cremado, as cinzas misturadas num mingau de banana a ser comido por eles para que seu corpo retornasse à vida pela via do parentesco.

Os brancos das religiões cristãs não estranham que suas crenças tenham como fundamento o sacramento da Eucaristia, por meio da qual o fiel se torna membro do corpo de Cristo: corpo e sangue que ele digere, um rito simbólico antropofágico.

O comandante do Exército anunciou que pretende empregar antropólogos como colaboradores de uma solução para o caso yanomami. Chegou a mencionar a hipótese de convocar os indígenas para o serviço militar. O que só complicaria a situação. Os valores de quartel, uma instituição total, bloqueada à compreensão da diversidade social, pois só reconhece a da hierarquia, acabariam dessocializando os indígenas e aniquilariam o que lhes resta como referência de identidade.

Não são os indígenas que devem compreender e acatar os brancos. São os brancos, e nesse caso os militares, que devem compreender antropologicamente os indígenas, reconhecer-lhes o direito à diferença e respeitá-la. Sem isso, não haverá Brasil.

O xamã Davi Kopenawa Yanomami escreveu e publicou um livro, em coautoria com o antropólogo francês Bruce Albert - “A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami” -, justamente para explicar ao branco o que são os indígenas e, sobretudo, o que são os brancos, coisa que os brancos não sabem.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

Um comentário:

  1. "O ideólogo autoidentificado da tragédia imposta aos yanomami é Jair Bolsonaro. Ele deixou um rastro de sua fixação adversa nesse povo brasileiro."
    Como o colunista mostra, são mais de 30 anos de combate a este povo, discursando contra ele, tentando legislar contra ele, e nos últimos 4 anos, exercendo a presidência do país, Bolsonaro empossou ministros e diretores de órgãos que executaram as ações antes pretendidas pelo GENOCIDA: reduziram os remédios para os índios (desviando tais remédios para os garimpeiros), diminuíram os serviços médicos nas terras indígenas (o que levou o STF a intervir) e negaram até água potável para os índios doentes (já que grande parte das águas junto aos garimpos está contaminada).

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