terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Luísa Martins - A tragédia indígena e a cronologia do desprezo

Valor Econômico

Ao STF, Bolsonaro fingiu executar plano, mas o ignorou

Que o ex-presidente Jair Bolsonaro trataria a pauta indígena como mais uma de suas agendas ideológicas, catapultadas pela poderosa máquina de ódio e desinformação que funcionava a passos do seu gabinete, não era segredo para ninguém. Ainda assim, o nefasto saldo dos seus quatro anos de governo, traduzido na imagem de uma senhora Yanomami à beira da morte por desnutrição, foi capaz de chocar o mundo.

Ao Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao governo anterior uma série de medidas para proteger os povos originários, Bolsonaro e seus auxiliares manipularam informações, facilitaram a fuga dos garimpeiros e fizeram pouco caso das reuniões com representantes indígenas. Obrigados a prestar contas periodicamente sobre as providências em andamento, apresentaram “provas” que nada comprovaram.

O caminho da negligência estava traçado desde o início da pandemia. Mais preocupado em ameaçar descumprir as decisões do STF, Bolsonaro não cogitou qualquer política pública especial para os indígenas. Coube ao ministro Luís Roberto Barroso ordenar a elaboração de um plano nacional de contenção do vírus. A primeira versão foi tão incompleta que precisou ser descartada. A segunda, idem. A terceira ainda era insuficiente. Um ano havia se passado. Nesse meio tempo, as mortes entre indígenas cresceram 108%.

A homologação do plano só veio na quarta tentativa. Na esteira dos ataques insuflados por Bolsonaro contra o STF, o alto escalão do governo – incluindo o núcleo militar lotado no Palácio do Planalto - mostrou antipatia pela causa desde a primeira reunião da Sala de Situação, em julho de 2020.

Os representantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), por exemplo, desdenharam dos indígenas, especialmente dos que viviam fora das áreas demarcadas, e inviabilizaram o diálogo técnico com os especialistas, a quem costumeiramente mandavam “baixar o tom”.

Os diretores bolsonaristas da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) desconheciam - ou fingiam desconhecer - os problemas que recaíam sobre as terras indígenas, como incêndios criminosos, ameaças de invasores e outros episódios de violência generalizada. Sem compartilhar informações, dificultavam a busca por soluções emergenciais.

Ao longo dos três anos seguintes, uma sequência de eventos suspeitos foi identificada pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Polícia Federal (PF). Os órgãos reportaram ao Supremo, em um processo sigiloso, uma espécie de boicote do governo às operações anti-invasores.

Bolsonaro retirou abrupta e injustificadamente o apoio das Forças Armadas, da Força Nacional de Segurança Pública e da Força Aérea Brasileira (FAB) nos territórios indígenas em que os conflitos se mostravam mais dramáticos. Alegou falta de verba e ignorou que situações de calamidade pública, a exemplo de uma pandemia mundial, permitem a abertura de crédito extraordinário, conforme a lei.

Depois, o governo divulgou de antemão a data e o local em que as operações policiais aconteceriam. O Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou as informações no “Diário Oficial da União”, enquanto o Ibama disparou um comunicado virtual a todos os servidores. Alertas, os invasores tiveram tempo de sobra para esconder o maquinário e fugir.

Há, ainda, relatos de aviões ligados ao garimpo ilegal que voltaram a circular mesmo depois de serem apreendidos e levados a um depósito, para posterior destruição. Por falta de controle do tráfego aéreo, um deles por pouco não colidiu com uma aeronave comercial de passageiros. Quanto ao plano nacional como um todo, a conclusão dos peritos foi categórica: o governo simulou que executou, mas não executou. A defesa de Bolsonaro não quis comentar.

As desconfianças começaram a surgir quando dois relatos sobre um mesmo episódio - um do governo e outro do Ministério Público - foram colocados lado a lado. No quadro comparativo, as inconsistências ficaram evidentes. Oficialmente, Bolsonaro descrevia o abastecimento regular e absolutamente normal de alimentos, remédios e água potável. A realidade era outra: desassistência completa. Mais de 2 mil documentos foram analisados.

Aberta por ordem de Barroso no vácuo da Procuradoria-Geral da República (PGR), a investigação deve atingir Bolsonaro, ex-ministros de Estado e ex-presidentes de autarquias diretamente envolvidas na questão ambiental. Ficam de fora os auxiliares que ocuparam a Advocacia-Geral da União (AGU), entre eles Bruno Bianco, o último da gestão anterior, e André Mendonça, hoje ministro da Corte.

A hipótese mais provável é de que as informações falsas tenham sido maquiadas pelos órgãos responsáveis e apenas repassadas ao Supremo pela AGU, que defende o presidente da República, mas não manda nem desmanda nas suas vontades políticas. Com bom trânsito na Corte desde aquela época, Mendonça, na verdade, é elogiado pelos colegas por ter tentado facilitar o diálogo entre os dois Poderes, quase sempre truncado.

De todo modo, os “erros operacionais” relatados pelos investigadores são muito crassos para serem considerados acidentais. Segundo um investigador a par das apurações, a performance pífia do governo Bolsonaro reforça a percepção de conivência com a catástrofe. “É caso de absurda ignorância ou inominável má-fé”, descreveu, dando ênfase à segunda opção.

Com a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a criação de um inédito Ministério dos Povos Indígenas, as terras arrasadas devem ser reconstruídas aos poucos, o que reduziria o papel do próprio STF na questão.

Enquanto isso, as apurações prosseguem com a PF. Para quem ainda acreditava que Bolsonaro, quando prometia afrontar o Supremo, estava na aba da retórica, esse caso provou o contrário: desrespeitar ordens judiciais, uma das faces do autoritarismo, era mesmo um projeto de poder - e seguido à risca.

 

2 comentários:

  1. Anônimo7/2/23 13:08

    Dirigentes do Ibama e da Funai foram escolhidos entre MILITARES e POLICIAIS para fazerem pouco ou nada do que deveriam realmente fazer. Incompetentes e mal intencionados, tais dirigentes só atrapalharam as ações dos técnicos que trabalhavam nestes órgãos. Eles implantavam as vontades de Bolsonaro, Damares Alves e Ricardo Salles, criminosos que comandaram o desmanche dos órgãos públicos e da fiscalização ambiental. São todos cúmplices de GENOCÍDIO e crimes ambientais, tentando esconder seus crimes com mentiras enviadas ao STF e à Justiça.

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  2. É muita coisa errada em quatro anos.

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