Valor Econômico
É irrestrita a presunção a respeito das
virtudes dos mercados na condução das economias ao nirvana do racionalismo
Ao assumir o cargo de secretário do Tesouro
do governo conservador, David Cameron recebeu de seu antecessor trabalhista,
Liam Byrne, um recado curto e grosso: “Meu caro secretário, sinto informar que
não há dinheiro”.
A mensagem é simples: se não há dinheiro,
corte seus gastos. O neuronavirus tem revelado enorme potencial de letalidade
intelectual, ademais de revelar singular capacidade na escolha das vítimas. Os
testes confirmam a preferência pelos neurônios do pensamento econômico
dominante.
A opinião pública tem sido submetida a um
insidioso processo de contaminação. Os especialistas e os comentaristas da
mídia repetem, incansáveis, os mantras da austeridade. Ao definir o que estava
“errado” e recomendar os remédios, a narrativa busca seletivamente escolher
algumas dimensões da economia para imputar a responsabilidade do ocorrido.
Os adeptos da austeridade fiscal e
monetária atribuem a David Ricardo a ideia da ineficácia das políticas
anticíclicas: os agentes racionais, aqueles que conhecem a estrutura da
economia e sua evolução provável, antecipam o aumento de impostos no futuro
para cobrir o déficit incorrido agora. Isso resultaria em maiores taxas de
inflação, subida das taxas de juro, expansão da dívida pública e necessidade de
maiores impostos no futuro.
Na dita Ciência Econômica que prevalece em nossos dias, é geral e irrestrita a presunção a respeito das virtudes do mercados, empenhados em conduzir as economias e as sociedades ao nirvana do naturalismo, racionalismo, individualismo e equilíbrio.
Essa visão da economia padece das certezas
do personagem de Charles Dickens na obra-prima “Tempos Difíceis”. “Sr. Thomas
Gradgrind. Um homem de realidades. Um homem de fatos e cálculos. Um homem que
trabalha de acordo com o princípio de que dois mais dois são quatro, e nada
mais, e não pode ser persuadido a permitir nada mais. Sr. Thomas Gradgrind -
peremptoriamente, Thomas - Thomas Gradgrind. Com uma régua e uma balança, e a
tabuada sempre no bolso, senhor, pronto para pesar e medir qualquer parcela da
natureza humana, e dizer o resultado exato. É uma mera questão de números, um
caso de simples aritmética”.
As tentativas de estabelecer relações de
causalidade em economia, mediante o uso dos necessários procedimentos
estatísticos, sobretudo na análise de séries longas, estão sujeitas a muitas
restrições de método e de concepção acerca das relações que determinam os
movimentos da economia como um todo.
Tais limitações foram apontadas por Keynes
em sua crítica ao texto “Statistical Testing of Business Cycles”, do economista
holandês Jon Tinbergen, publicado pela Liga das Nações em 1939. Ao tratar das
flutuações do investimento, Tinbergen atribui a queda do investimento às
flutuações dos lucros. Caem os lucros, definham os investimentos. Keynes
pergunta: e se as flutuações dos lucros fossem dependentes das flutuações do
investimento, “como, de fato, acontece”?
Vou fazer um reparo ao maior economista do
século XX. “Acontece” é a conclusão de um processo complexo. O que “acontece”
depende do que “faz acontecer”. Depende, portanto, das hipóteses teóricas que
estabelecem a hierarquia das relações que sustenta o movimento do todo.
Keynes encontrou confirmação no desempenho
das economias centrais durante os assim chamados 30 anos gloriosos do imediato
pós-Guerra. Esse período foi marcado por virtuosa e estável relação entre gasto
fiscal, endividamento público e privado e taxas de crescimento. Esse arranjo
favoreceu o crescimento dos lucros e dos salários reais, em consonância com os
ganhos de produtividade, elevando as receitas fiscais dos governos e
estimulando o investimento das empresas.
Os níveis de endividamento do setor privado
e do setor público, como proporção do PIB, evoluíram satisfatoriamente, porque
as taxas de crescimento elevadas da renda das famílias, dos lucros das empresas
e das receitas fiscais dos governos permitiam resultados positivos nos balanços
patrimoniais de empresas, famílias e governos.
Keynes nos encaminha ao economista e
pensador Joseph Schumpeter e suas divagações a respeito da Visão que constitui
o preâmbulo intelectual incontornável da Análise.
“À mistura de percepções que antecedem as
Análises chamaremos de Visão ou Intuição do pesquisador. Na prática, é claro,
quase nunca começamos do zero porque o ato pré-analítico da Visão não é inteiramente
nosso. Começamos a partir do trabalho de nossos antecessores ou contemporâneos
ou então a partir das ideias que flutuam ao nosso redor na mente pública. Neste
caso, nossa visão também conterá pelo menos alguns dos resultados de análises
científicas anteriores. No entanto, este composto ainda é dado a nós e existe
antes de começarmos o trabalho científico nós mesmos”.
As concepções ossificadas deixam de
examinar o conjunto de relações que estruturam a economia do capitalismo como
uma organização econômica, social e política singular, singular porque
histórica. Isso significa que essas relações se reproduzem num movimento
incessante de diferenciação e autotransformação no interior de sua estrutura.
Não há determinismo nem indeterminação: o capitalismo se transforma no processo
de reprodução de suas estruturas. A historicidade do capitalismo é a antítese
do historicismo vulgar.
Jurgen Habermas sugere que, além de estarem
submetidas à confirmação empírica (ou à rejeição), as teorias da sociedade
devem estar sujeitas à demonstração de que são “reflexivamente aceitáveis”. A
investigação deve compreender não apenas as instituições e práticas sociais,
mas também incluir as convicções que os agentes têm sobre a sua própria
sociedade - investigar não apenas a realidade social, mas os saberes que se
debruçam sobre ela. Uma teoria social é uma teoria a respeito das convicções
dos agentes sobre a sua sociedade, sendo ela mesma uma dessas convicções. Os
assim chamados cientistas sociais, sobretudo os economistas, costumam descuidar
dos fundamentos cognitivos implícitos em seus procedimentos.
* (Homenagem
a Charles Dickens)
**Luiz Gonzaga Belluzzo é
professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da
Universidade Federal de Goiás.
Os mercados conduziriam as economias e as sociedades ao progresso e desenvolvimento econômico e social, mas são cegos e insensíveis aos pobres, miseráveis e a quem não possa consumir seus produtos.
ResponderExcluirO título é perfeito, pois se Beluzzo se sente à vontade para voltar a escrever não pode haver prova melhor.
ResponderExcluirMAM
Não entendi bulhufas,mas é lindo.
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