O Estado de S. Paulo.
Brasil terá cada vez mais a possibilidade
de sugerir ao ‘hegemon’ a inevitável abertura para um mundo complexo e
‘policêntrico’, refratário à unipolaridade
Seremos Ocidente Extremo, na observação de Alain Rouquié, mas o fato é que nos momentos críticos os laços fundamentais se afirmam à vista de todos e nos reasseguram sobre este traço ineliminável. Na saída da ditadura, para voltar à crônica inicial da Nova República, quando eram imprevisíveis os movimentos da direita militar, o presidente Tancredo Neves pôs à prova a saúde frágil, como vinha fazendo havia tempo, numa viagem que reatava parcerias e diálogos, além de reinserir simbolicamente o País entre as grandes democracias. Tancredo, então, ombreou com gente da estatura de Felipe González, Mário Soares, François Mitterrand e Sandro Pertini, este último ex-prisioneiro de Mussolini e antifascista no sentido mais estrito. E assim, 20 anos depois de um golpe de Estado, por intermédio de Tancredo revimos amigos e nos reencontramos com nós mesmos.
As recentes incursões internacionais do
presidente Lula guardam afinidade com aquele fato já antigo. Saímos de uma
experiência que pode não ter rompido a institucionalidade democrática
“ocidental”, como ditaduras por definição o fazem, mas, à diferença do regime
autoritário, não teve nenhum propósito positivo. À sua maneira, os militares no
poder deram seguimento, em marcha forçada, à saga da modernização desigual e
excludente. O governo Bolsonaro, ao contrário, nasceu, vicejou e morreu sob o
signo da destruição, valendo-se do que há de pior na nossa História para
solapar a Constituição e investir contra consensos civilizatórios básicos.
Sem menosprezar tentativas anteriores de
integração, o Mercosul é uma criatura da Nova República. Impossível ignorar a geografia,
voltar as costas para os vizinhos ou, ainda, submeter relações entre países a
crivos ideológicos tacanhos. De um pequeno e valoroso vizinho, aliás,
recentemente recebemos uma lição alta de civilidade: na posse de Lula, a
delegação uruguaia trouxe o ex-presidente Pepe Mujica, sobrevivente dos anos de
chumbo, lado a lado com o atual presidente Lacalle Pou, de centro-direita. Com
certeza, as diferenças não se apagaram, mas eles deram o sinal de que a
democracia dos uruguaios admite a legitimidade de versões contrastantes do bem
comum, muito além da lógica binária de amigos contra inimigos que há décadas
nos intoxica e cujos frutos perversos ainda nos rodeiam.
Diferenças não se calam e podem ser
discutidas serenamente. Mais além do Mercosul, entre os países da comunidade
latino-americana também reunidos na Argentina havia os que, por qualquer
critério, não são democráticos. Cuba, por exemplo, é um anacronismo dos tempos
do partido Estado que em algum momento conhecerá a transição – e convém que
bons amigos se disponham a ajudar na hora mais delicada. A Venezuela constitui
um capítulo obrigatório na extensa literatura que estuda os processos de
regressão populista, deixando no seu rastro milhões de exilados e violações
continuadas dos direitos humanos. Que o digam os diversos relatórios produzidos
pela ONU sob a responsabilidade da socialista chilena Michelle Bachelet.
O argumento da soberania de Estados deste
tipo, frequentemente usado pelo próprio presidente Lula, tem fôlego curto. Uma
coisa é condenar sanções infrutíferas e defender plenas relações diplomáticas.
Outra, bem diferente, é só levar em conta o aparelho estatal, solidarizar-se
invariavelmente com seus dirigentes e ignorar a sociedade civil, os grupos
discriminados, a massa incontável dos que se expatriaram, e ainda se expatriam,
por motivos econômicos ou políticos. Este tipo de cegueira paga-se de vários
modos, inclusive internamente. Felizmente, o chileno Gabriel Boric parece ter
inteira percepção do tema ao recusar o duplo padrão de juízo e afirmar a
universalidade dos direitos humanos, pondo em xeque a absolutização do
princípio da “não intervenção” nos assuntos de outro Estado.
A lenta e difícil construção de uma nova
cultura política e diplomática marcou muitos pontos no encontro entre os presidentes
Lula e Biden. Ambos conheceram de perto a virulência da direita autocrática, em
cujo cerne estão o descrédito do voto e a negação da passagem pacífica de
poder. Entenderam-se na qualidade de “líderes das duas maiores democracias das
Américas”, preocupados com a questão democrática, a inclusão das minorias e a
crise ambiental. Convergiram, com as nuances sabidas, em assuntos de guerra e
paz, apontando “a violação da integridade territorial da Ucrânia pela Rússia”
como o fator decisivo do infame conflito.
Expressão do Extremo Ocidente, teremos cada
vez mais a possibilidade de sugerir ao hegemon a inevitável abertura para um
mundo complexo e policêntrico, refratário à unipolaridade – e até poderemos ser
um dos agentes autônomos de tal abertura. Numa relação entre iguais,
aprenderemos aos poucos a superar o “anti-imperialismo dos idiotas” (de acordo
com a síria Leila Al-Shami), que se limita a denunciar as transgressões
norte-americanas, ignorando as dimensões daquela grande democracia e
justificando, sem corar, atos e políticas imperiais de muitos outros atores da
cena mundial.
*Luiz Sérgio Henriques. Tradutor e
ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil
Boa Luiz Sérgio. Com certeza o Brasil é o país mais preparado em todo o mundo para ser a expressão do Extremo Ocidente. Especialmente agora que nos livramos da ameaça fascista e os índios contam até com um ministério da república. Agora é caminhar rumo a um mundo complexo e policêntrico avesso à uni, bi ou tripolaridade. E especialmente mais igual, livre dos resquícios do regime capitalista escravista que durou quase quatro séculos.
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