O Globo
O que mais espanta no desastre natural que
deixou pelo menos 48 mortos no litoral paulista é constatar que, não importa
quanta gente morra nem o tamanho do trauma, não somos capazes de evitar novas
tragédias.
Todo mundo sabe o que provoca as enchentes
e deslizamentos, há levantamentos detalhados sobre os riscos e há soluções que
ajudam a evitar as mortes. Com vontade política, também não falta dinheiro para
a prevenção.
Ainda assim, todo ano dezenas de pessoas
perecem soterradas pela lama, casas desmoronam morro abaixo, e as desculpas das
autoridades se reciclam.
As vítimas deste ano ainda tiveram um alento — a demonstração de empatia e senso de responsabilidade do presidente Lula e do governador paulista, Tarcísio de Freitas, que, apesar das divergências políticas, foram à região e se propuseram a trabalhar em conjunto. São atitudes bem diferentes das que costumamos ver durante o governo Bolsonaro.
Infelizmente, a volta a patamares mínimos
de civilidade e ação não basta para evitar novos desastres. Climatólogos,
ambientalistas e urbanistas são unânimes em afirmar que a ocupação intensa e
desordenada do solo e as mudanças
climáticas tendem a tornar os desastres naturais mais frequentes e
graves.
As soluções também se tornam mais complexas
— mas não são desconhecidas. O cardápio é amplo e foi bastante explorado nos
últimos dias. Mas, para que seja eficaz, é preciso mudar a forma como se
planejam as políticas públicas no Brasil.
Um exemplo: vítimas de tragédias como a do
litoral paulista são em regra de baixa renda e vivem em áreas que deveriam ser
ambientalmente protegidas.
Depois de sobrevoar a região dos
desabamentos, o presidente Lula falou em construir casas em “terrenos seguros”
para essas famílias. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva,
também disse que proporá a criação de uma linha de crédito para ações de
adaptação.
Só que, como costuma acontecer nesses
casos, mesmo depois do trauma de perder quase tudo, muitos desabrigados dizem
que não pretendem se mudar porque não querem ficar longe da família, dos amigos
ou do emprego. Mesmo que ganhem casas em “locais seguros”, a chance de voltarem
a viver em lugares precários é grande.
Assim que iniciou o terceiro mandato, Lula
recriou o Ministério das Cidades e, na semana passada, ressuscitou também o
Minha Casa Minha Vida (MCMV), prevendo voltar a financiar habitação para as
famílias de renda mais baixa. Implantado em 2009, ele aplicou R$ 552,8 bilhões
na construção de mais de 5 milhões de casas até 2020.
Foi um grande negócio para as construtoras,
algumas das quais se tornaram campeãs nacionais. Mas, segundo dados do próprio
programa, a faixa de renda mais baixa, que concentrou a maior parte dos
recursos no início, recebeu um terço do total de financiamentos. Entre 2009 e
2020, o déficit habitacional do Brasil piorou, e a quantidade de famílias
vivendo em favelas aumentou.
Hoje, segundo o Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), 9,5 milhões de pessoas
vivem em áreas de risco no Brasil, grande parte delas nas grandes metrópoles.
Isso quer dizer que o Minha Casa Minha Vida
foi ruim? Certamente não, mas faltou o que o urbanista Washington Fajardo,
ex-secretário de Habitação do Rio de Janeiro, chama de metas definidas e
avaliação de impacto.
Fajardo, que escreveu artigo
sobre o tema no GLOBO de ontem, é um dos críticos do desenho do programa,
que deixou de atender populações em áreas de risco. Uma das razões por que isso
ocorreu, segundo ele, é que, assim como o antigo BNH, o MCMV tinha o objetivo
de atender ao mercado e de estimular a economia, mas não resolver o problema
habitacional do Brasil.
“Construir casas não é política
habitacional. É mais do que isso”, diz Fajardo.
É por isso que não basta a Lula repetir
agora o que já fez no segundo mandato. Além de haver lições a tirar da
experiência anterior, o contexto mudou. O presidente se propôs a fazer a diferença
na questão climática e na redução das desigualdades, e o desastre do litoral
paulista mostra quanto essas duas prioridades estão ligadas.
Tirar pessoas das áreas de risco deveria ser tão prioritário para a economia e para o meio ambiente quanto reflorestar a Amazônia. Num governo que pretende se destacar pelo combate às mudanças climáticas, o próprio termo “campeões nacionais” deveria ganhar outro sentido. O histórico brasileiro mostra que não é fácil, mas talvez seja a única forma de parar de perder vidas para a lama.
O programa ''minha casa,minha vida'' devia fazer casa para os ''sem-casa'',no entanto,assistir os moradores que vivem em área de risco acaba sendo prioritário.
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