quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Maria Cristina Fernandes - Êxitos pós 8/1 turvam visão de Lula sobre BC

Valor Econômico

Lula não pode trocar o comandante do BC como quem troca o comandante do Exército

Aos 77 anos, depois de amargar 580 dias numa prisão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou uma eleição e, há um mês, venceu uma guerra. Agora acredita que pode trocar o presidente do Banco Central da mesma forma que substituiu o comandante do Exército. Os cartuchos hoje lhe sobram mas, desperdiçados, podem lhe faltar.

Nenhuma outra liderança teria conquistado as duas vitórias. Já tem um lugar na história a visão estratégica de Lula de recusar a decretação da operação de Garantia da Lei e da Ordem com a qual se pretendia limpar o passivo da adesão militar ao bolsonarismo e manter as Forças Armadas no eixo do poder.

Some-se à primazia, a chance de conquistar a opinião pública mundial como o líder que salvou a maior reserva indígena do país. Para completar, o capitalismo tupiniquim tipo exportação mostrou, no caso das Americanas, que a ação predatória não é uma prerrogativa do Estado e embaralhou o jogo ideológico do bolsonarismo.

Esta conjunção favorável dos astros não confere uma licença para Lula neles pisar distraído. Além de distração de um presidente cuja visão parece turvada pelos êxitos, a cantilena contra o BC é um erro - mais de método do que de mérito.

Tem procedência a queixa de Lula. A meta de inflação é de 3,25% em 2023 e de 3% em 2025. O regime estabelecido em 1999 aceita uma variação de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Há bons economistas na praça a lembrar que, em junho de 2002, o mesmo governo que estabeleceu o regime de metas de inflação a alterou para o ano seguinte de 3,25% para 4%. E ainda alargou a banda de variação de 2% para 2,5%.

Em artigo recente, Claudio Adilson Gonçalez argumentou que países endividados só conseguem taxas de inflação muito baixas quando adotam políticas fiscais muito austeras e que, por isso, uma meta de 4% seria mais realista do que 3%. Além disso, é compreensível que um presidente recém-eleito veja numa taxa de juros de 13,75% uma ameaça ao crescimento e ao crédito, tema uma inadimplência espraiada e uma economia sufocada.

O problema é Lula, que sempre atuou como árbitro nas disputas de seu governo, ter assumido a linha de frente da investida contra a autoridade monetária. Não apenas não há quem arbitre uma disputa com o presidente da República como sua cantilena diária acaba por minar as chances de o objetivo desejado, a elevação da meta, ser alcançada.

Ao chamar Roberto Campos Neto de “cidadão” e o comunicado do Copom de “vergonhoso”, dizer que a independência do Banco Central não serve pra nada e ameaçar mover sua base no Senado contra o mandato do presidente do banco, Lula adiciona incertezas à conjuntura e respalda a autoridade monetária a atuar no sentido inverso ao pretendido. Como todos os presidentes - o antecessor incluído - Lula faz oposição ao próprio governo. Só que o BC não é mais governo. Bater em sua autonomia é contraproducente, simples assim.

Campos Neto colaborou com a campanha do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018, vestiu o uniforme verde-amarelo nos dois turnos da reeleição e confraternizou além da conta com a claque bolsonarista, mas não deixou de subir a taxa de juros na campanha em que seu candidato buscava a reeleição.

Além disso, Lula acaba por desautorizar os auxiliares que fazem a interlocução direta com o Banco Central. O mais espremido deles é o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A pressão do presidente afeta a margem de manobra do ministro na reunião do Conselho Monetário Nacional, onde tem assento, além de Campos Neto, a ministra do Planejamento, Simone Tebet.

O dano não se limita ao CMN. Haddad está em plena negociação da reforma tributária e de seu pacote fiscal com o Congresso Nacional. Negociação dura e intrincada. Basta constatar que o modelo de formação de maiorias na instância de apelação para infrações tributárias, o Carf, que a Fazenda quer mudar, teve no atual presidente da Câmara dos Deputados um de seus principais defensores.

O ministro precisa aprovar esta reforma para fazer jus à “amigável” aposta em seu pacote feita pela ata do Comitê de Política Monetária. A credibilidade da nova âncora fiscal, a ser apresentada em abril, está vinculada ao sucesso da reforma nas receitas do Estado.

O insucesso de Haddad não comprometeria apenas a política econômica de Lula mas a própria correlação de forças entre Executivo e Legislativo. Todo governo novo assume com força para dar as cartas. Basta ver a garfada no orçamento secreto. Uma derrota no pacote fiscal e na reforma tributária reposicionaria os pratos desta balança e devolveria ao Congresso, especialmente ao deputado Arthur Lira (PP-AL), prerrogativas no diálogo com a finança e a indústria que a posse conferiu ao Executivo.

É natural a pressa por resultados. Todos têm. Tanto o presidente, que abandonou cedo demais a promessa de disputar um único mandato, quanto ministros que jogam seu futuro político nos mandatos que exercem, e, principalmente, o eleitor desempregado, desabrigado e desesperançado.

Lula conseguiu unir os Poderes em torno da defesa da democracia e tem o Supremo mobilizado para o desmonte do achincalhe bolsonarista contra as instituições. Foi capaz, ainda, de reunir um número inédito de governadores. Atraiu até aqueles que se mantiveram ao lado de Bolsonaro a despeito da garfada nas finanças estaduais na escalada de desoneração da campanha eleitoral. Reuniu-se, ainda, no primeiro mês de governo, com representantes de 15 países, metade do que Bolsonaro o fez em quatro anos de mandato.

Não é razoável que, depois de tantos êxitos, o presidente da República esbraveje como um derrotado. O primeiro sinal de inflexão aconteceu ontem ao discursar para os presidentes de partidos que integram a base do governo. Lula conseguiu defender o direito de os eleitos estabelecerem as políticas econômica e social respaldadas pelas urnas sem mencionar o BC.

Na relação com aqueles com quem cultiva divergências na política monetária, bastaria seguir o conselho de Vito Corleone para seu filho, Michael: “Nunca sinta ódio pelos inimigos, isso atrapalha o raciocínio”.

 

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