Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Em depoimento inédito ao projeto “Memória
da Constituinte”, ele contou como atuou para que a ingerência militar na lei e
na ordem internas permanecessem intactas
“Tira
esses óculos aí que quero ver sua cara.” O general Leônidas Pires Gonçalves
tinha 88 anos e mal tinha chegado à sala reservada para seu depoimento quando
enquadrou um dos pesquisadores que o aguardava. Corria a tarde do dia 11 de
dezembro de 2009, quando o primeiro ministro do Exército pós-ditadura chegou à
sala da pós-graduação no quarto andar da sala da faculdade de direito da
PUC-RJ.
Por duas horas, daria um depoimento aos
pesquisadores do projeto “Memórias da Constituinte”, que reúne pesquisadores de
oito instituições (Unifesp, Cedec, USP, Unicamp, Uerj, Ufscar, Unesp e
Mackenzie) e é coordenado pelo professor de ciência política da Unifesp Antônio
Sérgio Rocha. O seu depoimento é um dos 30 revisados e autorizados pelos
entrevistados entre os 152 já realizados pelo projeto.
“O Exército conseguiu tudo o que queria na Constituição”, declarou o general num depoimento, que permanece inédito, em que ele detalha seu trabalho para manter incólume a atuação das Forças Armadas na lei e na ordem internas do país. A prerrogativa está no artigo 142 da Constituição, alvo de proposta de emenda à Constituição para a qual o deputado Ricardo Zarattini (PT-SP) colhe assinaturas.
Crucial para a reconstituição do capítulo
dos militares nos trabalhos da constituinte, o depoimento saiu depois de um
longo cortejo, que começou pela investida de um dos pesquisadores, também
diplomata, Ademar Seabra da Cruz Jr., para que o adido militar do Exército em
Montevidéu lhe fizesse a ponte com seu amigo de infância, e alcançou dona Dóris,
a esposa de Leônidas, presenteada com um buquê de flores na visita precursora
ao apartamento do casal no Rio.
“Quando o general cruzou as pernas mostrou
a sola do sapato intacta e percebi que havia se produzido para a entrevista”,
recorda Antônio Sérgio Rocha. A despeito do cortejo e da produção, o general
custou a relaxar. Começou como se estivesse num tribunal da democracia. Assim
se manteve até a morte, aos 94 anos. Em 2012, protestara contra a Comissão
Nacional da Verdade - “moeda falsa que só tem um lado”, definiu.
O general atribuiu o êxito dos militares na
Constituinte à frente de batalha que montara, a começar por sua própria
iniciação no tema na Escola Superior de Guerra, quando escolheu o “modelo
político brasileiro” para tema de sua monografia e o levou a estudar todas as
Constituições brasileiras.
E pontificou sobre o modelo de democracia
mais apropriado para o Brasil. “Propus uma série de coisas que estão para fazer
e até hoje não fizeram”, disse, antes de desfiar uma lista que começa pelo voto
distrital e termina pela adoção de quatro partidos, de “direita,
centro-direita, centro-esquerda e esquerda”.
Como pano de fundo de sua visão, ofereceu
dois valores para a democracia das baionetas: um, universal, “que todo mundo
conhece”, e outro, “mais apropriado à pátria” - “Não somos iguais à França. Não
somos iguais à Inglaterra. Então nossa Constituição não pode se igualar à
desses países”.
Como estava diante de acadêmicos, achou por
bem encaixar um Sólon, jurista ateniense - “Gosto de citar uma passagem de
Sólon, que, perguntado ‘Qual é a melhor Constituição?’, respondeu: ‘Diga-me
primeiro para que povo e para que época’”. A época era o governo Ernesto Geisel
para quem, Leônidas remeteu sua monografia. O conhecimento adquirido sobre a
democracia não lhe custara nenhum voto. A aprovação do general-presidente lhe
bastava.
Leônidas conta que começou a se preparar
para a Constituinte assim que assumiu o Ministério do Exército, em 1985, a
convite de Tancredo Neves. E decidiu que só ele falaria pela instituição.
Elaborou 26 pontos que seriam a prioridade das Forças Armadas e enviou a todos
os congressistas. Para se assegurar que as prioridades seriam preservadas,
colocou oito assessores dia e noite no Congresso, chefiados por um general.
Quando o último deputado saía, o oficial mais credenciado ligava para ele -
“Não importando a hora que fosse”.
O general dividia-se entre o lobby da
Constituinte e a vigilância sobre um rebelde capitão, Jair Bolsonaro, a quem
tentou expulsar do Exército depois de prendê-lo por indisciplina, em 1986. A
reaproximação com o general e sua família foi parte da estratégia de Bolsonaro
rumo ao poder, como conta Fabio Vitor, em “Poder Camuflado”.
Os pesquisadores insistem no nome do
general e dos assessores, mas ele disse não se lembrar de mais nada. Vinte anos
depois, só Leônidas continuava autorizado a falar sobre o tema. O foco,
afirmou, eram os “interesses do Exército” como se estivesse abrindo mão da
interferência em outros temas - “Nas outras coisas, nós não nos metemos - nem
mesmo na questão do presidencialismo”.
O general dizia uma coisa e seu contrário.
Contou que abordava o relator, Bernardo Cabral, e o indagava sobre a
consequência deste ou daquele dispositivo - “Geralmente a consequência era algo
da área financeira: os constituintes abriam mão, gastavam dinheiro à toa”.
No eixo de sua missão, a preservação da
garantia da lei e da ordem, não admitiu que os constituintes saíssem da rota
planejada. “Pelo recalque que tinham de 1964”, disse, se fazia uma Constituição
“olhando para o passado”. O que chama de “recalque” é a permanência dos
militares no poder, por 21 anos, depois de golpe movido pela garantia da lei e
da ordem.
No retrospecto das Constituições, quem
estava com o olhar voltado para o passado era o general Leônidas. Das sete
promulgadas pós-independência, em apenas duas (1824 e 1937) não constava a
previsão de ingerência militar na ordem interna.
Desde a posse de Sarney já tinha ficado
claro que o general Leônidas não abriria mão do dispositivo. Foi ele mesmo quem
contou, no depoimento, como se tornou o principal interlocutor dos civis nas
Forças Armadas durante a transição para a Nova República.
Conheceu Tancredo Neves quando era
comandante da 4ª Brigada de Infantaria, em Belo Horizonte, nos anos 1970.
Sentavam-se juntos nos jantares mensais dos oficiais e civis que haviam cursado
a ESG. Em 1984, já comandante do III Exército, em Porto Alegre, recebeu a
visita do senador Afonso Camargo, seu amigo de juventude, que vinha saber sua
opinião sobre a candidatura de Tancredo à Presidência.
Ao dizer que o governador mineiro seria uma
boa opção para “pacificar o país”, passou a ter uma interlocução frequente com
José Sarney, Camargo e José Richa, à época governador do Paraná. Os dois
últimos formalizaram, no Rio, o convite para que fosse o ministro do Exército
de Tancredo.
Em seguida, encontrou o presidente eleito
pelo colégio eleitoral para a formalização do convite. Foi a última vez que se
viram. Na véspera da posse, estava num jantar em sua homenagem na Academia de
Tênis de Brasília quando o general Ivan de Souza Mendes, diretor do SNI, o
alcançou. Ele estava no Hospital de Base de Brasília e foi sucinto: “Não estou
gostando das coisas aqui”.
O general pegou uma gravata emprestada e
rumou de lá mesmo para o hospital. Entrou numa sala em que estavam Sarney,
Antonio Carlos Magalhães, Pedro Simon e Ulysses Guimarães. A pauta era o
impasse sobre quem tomaria posse no dia seguinte.
“Um momento aí. Qual é a dúvida que os
senhores têm? De acordo com a Constituição de 1969, nos seus artigos 76 e 77,
quem toma posse é o vice-presidente da República”, foi o que disse, segundo seu
relato. O próprio general se encarregou de definir a reação ao desplante:
“Imaginem o susto: um general ter o desfrute de afirmar isso tudo”. Atribui sua
reação não ao vezo da interferência na lei e na ordem, mas ao seu “conhecimento
profundo” da Constituição vigente.
No pano de fundo da tensão que o general
acreditava ter solucionado com seus conhecimentos constitucionais estava a
indisposição do presidente João Figueiredo em passar o cargo para Sarney, como,
efetivamente, não o fez.
Ante a reação do chefe da Casa Civil de
Figueiredo, Leitão de Abreu, disse tê-lo ordenado a buscar a Constituição e ler
os artigos concernentes. Neste momento, Leônidas manda a modéstia às favas:
“Eu, com conhecimento e poder, saiam da frente. Eu não temo as oportunidades
que o destino me dá, eu agarro e vou em frente”.
O irrefreável Leônidas passa, então, a
relatar o episódio mais conhecido de seu envolvimento no drama que inviabilizou
a posse de Tancredo. As hipóteses cogitadas eram a posse de Sarney ou de
Ulysses Guimarães.
O general tinha acumulado desgostos com
Ulysses como aquele provocado pelo discurso, na promulgação da Constituinte em
que evocou a memória de Rubens Paiva, deputado morto nas dependências do
Destacamento de Operações Especiais (DOI), no quartel do Exército, no Rio - “A
sociedade foi Rubens Paiva, não os fascínoras que o mataram”.
No depoimento, o general deu sua versão do
episódio que o levou deixar o plenário do Congresso sem cumprimentar Ulysses,
nem comparecer à sua festa de aniversário, apesar de “gostar dele” - “Ele me
vem falar daquele rapaz, um subversivo, que foi torturado no Uruguai. Eu achei
que isso não tinha cabimento”. Foi neste discurso que Ulysses pronunciou a
frase que marcou o encerramento da Constituinte: “Temos ódio à ditadura! Ódio e
nojo!”.
Apesar de registrar a desavença, Leônidas
não desfavorece Ulysses em seu depoimento: “A bem da verdade, digo que não vi
nenhuma manifestação de ambição por parte deles; os dois (Ulysses e Sarney)
estavam quietinhos”.
Concluiu, então, com a frase que passaria à história: “Telefonei para Sarney às 3h da manhã e ele me disse assim: ‘Leônidas, estou com o maior constrangimento de assumir isso com tranquilidade’. Eu respondi para ele: ‘Sarney, deu um trabalho danado para consertar tudo isso. Boa noite, presidente”. A resistência das Forças Armadas para manter a ingerência interna mostra que a escolha do verbo pelo general não é acidental.
Maria Cristina Fernandes dá, em poucas linhas, uma segunda rara visão panorâmica do sério problema constitucional.
ResponderExcluirE mostra outra vez que o buraco é muito mas muito mais embaixo.
Excelente coluna, parabéns à autora e ao blog!
ResponderExcluirO Exército sempre teve clareza do potencial destrutivo do militar Jair Bolsonaro, e de suas tendências criminosas, expressadas algumas vezes dentro da própria corporação, planejando atentados a bomba e rebeliões. MAU MILITAR era a avaliação repetida por seus comandantes! Ainda assim, o canalha conseguiu chegar ao posto de capitão, antes de ser finalmente EXPULSO das Forças Armadas.
Lendo e aprendendo.
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