sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Maria Cristina Fernandes - “O Exército conseguiu tudo o que queria”

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Em depoimento inédito ao projeto “Memória da Constituinte”, ele contou como atuou para que a ingerência militar na lei e na ordem internas permanecessem intactas

 “Tira esses óculos aí que quero ver sua cara.” O general Leônidas Pires Gonçalves tinha 88 anos e mal tinha chegado à sala reservada para seu depoimento quando enquadrou um dos pesquisadores que o aguardava. Corria a tarde do dia 11 de dezembro de 2009, quando o primeiro ministro do Exército pós-ditadura chegou à sala da pós-graduação no quarto andar da sala da faculdade de direito da PUC-RJ.

Por duas horas, daria um depoimento aos pesquisadores do projeto “Memórias da Constituinte”, que reúne pesquisadores de oito instituições (Unifesp, Cedec, USP, Unicamp, Uerj, Ufscar, Unesp e Mackenzie) e é coordenado pelo professor de ciência política da Unifesp Antônio Sérgio Rocha. O seu depoimento é um dos 30 revisados e autorizados pelos entrevistados entre os 152 já realizados pelo projeto.

“O Exército conseguiu tudo o que queria na Constituição”, declarou o general num depoimento, que permanece inédito, em que ele detalha seu trabalho para manter incólume a atuação das Forças Armadas na lei e na ordem internas do país. A prerrogativa está no artigo 142 da Constituição, alvo de proposta de emenda à Constituição para a qual o deputado Ricardo Zarattini (PT-SP) colhe assinaturas.

Crucial para a reconstituição do capítulo dos militares nos trabalhos da constituinte, o depoimento saiu depois de um longo cortejo, que começou pela investida de um dos pesquisadores, também diplomata, Ademar Seabra da Cruz Jr., para que o adido militar do Exército em Montevidéu lhe fizesse a ponte com seu amigo de infância, e alcançou dona Dóris, a esposa de Leônidas, presenteada com um buquê de flores na visita precursora ao apartamento do casal no Rio.

“Quando o general cruzou as pernas mostrou a sola do sapato intacta e percebi que havia se produzido para a entrevista”, recorda Antônio Sérgio Rocha. A despeito do cortejo e da produção, o general custou a relaxar. Começou como se estivesse num tribunal da democracia. Assim se manteve até a morte, aos 94 anos. Em 2012, protestara contra a Comissão Nacional da Verdade - “moeda falsa que só tem um lado”, definiu.

O general atribuiu o êxito dos militares na Constituinte à frente de batalha que montara, a começar por sua própria iniciação no tema na Escola Superior de Guerra, quando escolheu o “modelo político brasileiro” para tema de sua monografia e o levou a estudar todas as Constituições brasileiras.

E pontificou sobre o modelo de democracia mais apropriado para o Brasil. “Propus uma série de coisas que estão para fazer e até hoje não fizeram”, disse, antes de desfiar uma lista que começa pelo voto distrital e termina pela adoção de quatro partidos, de “direita, centro-direita, centro-esquerda e esquerda”.

Como pano de fundo de sua visão, ofereceu dois valores para a democracia das baionetas: um, universal, “que todo mundo conhece”, e outro, “mais apropriado à pátria” - “Não somos iguais à França. Não somos iguais à Inglaterra. Então nossa Constituição não pode se igualar à desses países”.

Como estava diante de acadêmicos, achou por bem encaixar um Sólon, jurista ateniense - “Gosto de citar uma passagem de Sólon, que, perguntado ‘Qual é a melhor Constituição?’, respondeu: ‘Diga-me primeiro para que povo e para que época’”. A época era o governo Ernesto Geisel para quem, Leônidas remeteu sua monografia. O conhecimento adquirido sobre a democracia não lhe custara nenhum voto. A aprovação do general-presidente lhe bastava.

Leônidas conta que começou a se preparar para a Constituinte assim que assumiu o Ministério do Exército, em 1985, a convite de Tancredo Neves. E decidiu que só ele falaria pela instituição. Elaborou 26 pontos que seriam a prioridade das Forças Armadas e enviou a todos os congressistas. Para se assegurar que as prioridades seriam preservadas, colocou oito assessores dia e noite no Congresso, chefiados por um general. Quando o último deputado saía, o oficial mais credenciado ligava para ele - “Não importando a hora que fosse”.

O general dividia-se entre o lobby da Constituinte e a vigilância sobre um rebelde capitão, Jair Bolsonaro, a quem tentou expulsar do Exército depois de prendê-lo por indisciplina, em 1986. A reaproximação com o general e sua família foi parte da estratégia de Bolsonaro rumo ao poder, como conta Fabio Vitor, em “Poder Camuflado”.

Os pesquisadores insistem no nome do general e dos assessores, mas ele disse não se lembrar de mais nada. Vinte anos depois, só Leônidas continuava autorizado a falar sobre o tema. O foco, afirmou, eram os “interesses do Exército” como se estivesse abrindo mão da interferência em outros temas - “Nas outras coisas, nós não nos metemos - nem mesmo na questão do presidencialismo”.

O general dizia uma coisa e seu contrário. Contou que abordava o relator, Bernardo Cabral, e o indagava sobre a consequência deste ou daquele dispositivo - “Geralmente a consequência era algo da área financeira: os constituintes abriam mão, gastavam dinheiro à toa”.

No eixo de sua missão, a preservação da garantia da lei e da ordem, não admitiu que os constituintes saíssem da rota planejada. “Pelo recalque que tinham de 1964”, disse, se fazia uma Constituição “olhando para o passado”. O que chama de “recalque” é a permanência dos militares no poder, por 21 anos, depois de golpe movido pela garantia da lei e da ordem.

No retrospecto das Constituições, quem estava com o olhar voltado para o passado era o general Leônidas. Das sete promulgadas pós-independência, em apenas duas (1824 e 1937) não constava a previsão de ingerência militar na ordem interna.

Desde a posse de Sarney já tinha ficado claro que o general Leônidas não abriria mão do dispositivo. Foi ele mesmo quem contou, no depoimento, como se tornou o principal interlocutor dos civis nas Forças Armadas durante a transição para a Nova República.

Conheceu Tancredo Neves quando era comandante da 4ª Brigada de Infantaria, em Belo Horizonte, nos anos 1970. Sentavam-se juntos nos jantares mensais dos oficiais e civis que haviam cursado a ESG. Em 1984, já comandante do III Exército, em Porto Alegre, recebeu a visita do senador Afonso Camargo, seu amigo de juventude, que vinha saber sua opinião sobre a candidatura de Tancredo à Presidência.

Ao dizer que o governador mineiro seria uma boa opção para “pacificar o país”, passou a ter uma interlocução frequente com José Sarney, Camargo e José Richa, à época governador do Paraná. Os dois últimos formalizaram, no Rio, o convite para que fosse o ministro do Exército de Tancredo.

Em seguida, encontrou o presidente eleito pelo colégio eleitoral para a formalização do convite. Foi a última vez que se viram. Na véspera da posse, estava num jantar em sua homenagem na Academia de Tênis de Brasília quando o general Ivan de Souza Mendes, diretor do SNI, o alcançou. Ele estava no Hospital de Base de Brasília e foi sucinto: “Não estou gostando das coisas aqui”.

O general pegou uma gravata emprestada e rumou de lá mesmo para o hospital. Entrou numa sala em que estavam Sarney, Antonio Carlos Magalhães, Pedro Simon e Ulysses Guimarães. A pauta era o impasse sobre quem tomaria posse no dia seguinte.

“Um momento aí. Qual é a dúvida que os senhores têm? De acordo com a Constituição de 1969, nos seus artigos 76 e 77, quem toma posse é o vice-presidente da República”, foi o que disse, segundo seu relato. O próprio general se encarregou de definir a reação ao desplante: “Imaginem o susto: um general ter o desfrute de afirmar isso tudo”. Atribui sua reação não ao vezo da interferência na lei e na ordem, mas ao seu “conhecimento profundo” da Constituição vigente.

No pano de fundo da tensão que o general acreditava ter solucionado com seus conhecimentos constitucionais estava a indisposição do presidente João Figueiredo em passar o cargo para Sarney, como, efetivamente, não o fez.

Ante a reação do chefe da Casa Civil de Figueiredo, Leitão de Abreu, disse tê-lo ordenado a buscar a Constituição e ler os artigos concernentes. Neste momento, Leônidas manda a modéstia às favas: “Eu, com conhecimento e poder, saiam da frente. Eu não temo as oportunidades que o destino me dá, eu agarro e vou em frente”.

O irrefreável Leônidas passa, então, a relatar o episódio mais conhecido de seu envolvimento no drama que inviabilizou a posse de Tancredo. As hipóteses cogitadas eram a posse de Sarney ou de Ulysses Guimarães.

O general tinha acumulado desgostos com Ulysses como aquele provocado pelo discurso, na promulgação da Constituinte em que evocou a memória de Rubens Paiva, deputado morto nas dependências do Destacamento de Operações Especiais (DOI), no quartel do Exército, no Rio - “A sociedade foi Rubens Paiva, não os fascínoras que o mataram”.

No depoimento, o general deu sua versão do episódio que o levou deixar o plenário do Congresso sem cumprimentar Ulysses, nem comparecer à sua festa de aniversário, apesar de “gostar dele” - “Ele me vem falar daquele rapaz, um subversivo, que foi torturado no Uruguai. Eu achei que isso não tinha cabimento”. Foi neste discurso que Ulysses pronunciou a frase que marcou o encerramento da Constituinte: “Temos ódio à ditadura! Ódio e nojo!”.

Apesar de registrar a desavença, Leônidas não desfavorece Ulysses em seu depoimento: “A bem da verdade, digo que não vi nenhuma manifestação de ambição por parte deles; os dois (Ulysses e Sarney) estavam quietinhos”.

Concluiu, então, com a frase que passaria à história: “Telefonei para Sarney às 3h da manhã e ele me disse assim: ‘Leônidas, estou com o maior constrangimento de assumir isso com tranquilidade’. Eu respondi para ele: ‘Sarney, deu um trabalho danado para consertar tudo isso. Boa noite, presidente”. A resistência das Forças Armadas para manter a ingerência interna mostra que a escolha do verbo pelo general não é acidental.

3 comentários:

Anônimo disse...

Maria Cristina Fernandes dá, em poucas linhas, uma segunda rara visão panorâmica do sério problema constitucional.
E mostra outra vez que o buraco é muito mas muito mais embaixo.

Anônimo disse...

Excelente coluna, parabéns à autora e ao blog!
O Exército sempre teve clareza do potencial destrutivo do militar Jair Bolsonaro, e de suas tendências criminosas, expressadas algumas vezes dentro da própria corporação, planejando atentados a bomba e rebeliões. MAU MILITAR era a avaliação repetida por seus comandantes! Ainda assim, o canalha conseguiu chegar ao posto de capitão, antes de ser finalmente EXPULSO das Forças Armadas.

ADEMAR AMANCIO disse...

Lendo e aprendendo.