O Estado de S. Paulo.
Brota das condutas de Bolsonaro e de seu governo a revelação da intencionalidade comandada pelo desprezo à vida dos indígenas
O governo Bolsonaro deixou um rastro de
destruição, da qual a barbárie de 8 de janeiro é exemplo. Porém chocam ainda
mais as imagens do extermínio de centenas de crianças Yanomamis, reveladas pelo
jornal Sumaúma, fruto da exploração ilegal de minérios nas terras indígenas.
Conforme a Hutukara Associação Yanomami, o
monitoramento do garimpo em terra indígena indica que em 2018 havia a ocupação
de 1.200 hectares, que em dezembro de 2021 quase triplicara, passando a 3.272
hectares.
No ano passado foi maior a invasão por garimpeiros, causando desmatamento, destruição de habitat e contaminação da água e dos solos. Houve a disseminação de doenças infectocontagiosas (em especial a malária), a contaminação pelo metilmercúrio e a subnutrição atingindo metade da população Yanomami, dando azo à pneumonia.
O garimpo causa elevada concentração de
mercúrio no corpo, a ponto de uma criança de três anos apresentar o equivalente
a sete vezes o limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o
dobro do limite para surgirem efeitos adversos à saúde.
As comunidades sob domínio de garimpeiros
ficaram sem postos de saúde e sem remédios, desviados pelos invasores. Crianças
indígenas morrem em proporção dez vezes maior que as não indígenas e mulheres
são estupradas, tendo razão o procurador da República Alisson Marugal: “A
defesa do território indígena é a defesa da vida”.
Tinha dúvida se configura-se genocídio ou
crime contra a humanidade. Ambos, previstos no Estatuto de Roma, que criou o
Tribunal Penal Internacional (TPI), têm a mesma gravidade.
O genocídio consta de nossa legislação
desde 1956, caracterizado pelos atos de matar membros de grupo, causar-lhes
lesão grave e submetê-los a condições de existência capazes de os destruir.
Essas ações devem ser presididas pela intenção de eliminar, no todo ou em
parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Assim está previsto também
no Estatuto de Roma. Sylvia Steiner, ex-juíza do TPI, ensina requerer o
genocídio elemento intencional específico a presidir a conduta, qual seja, de o
ato realizar-se, por exemplo, em razão da etnia ou da raça do grupo.
O Estatuto de Roma cria também o crime
contra a humanidade. Este crime consiste no ataque, generalizado (com diversas
vítimas) e sistemático (reiterado e planejado), contra qualquer população
civil, por meio de homicídio, extermínio, escravidão ou atos desumanos de
caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, num contexto
no qual haja a política de um Estado ou de uma organização na concepção e
realização desse ataque.
Percebe-se sem percalços, neste caso, um
crime contra a humanidade, pois há o extermínio de parte da população Yanomami,
com a assustadora morte de 570 crianças – em proporção dez vezes maior que a
mortalidade infantil de não indígenas –, decorrente da orientação governamental
de incentivar e proteger a invasão de terras dos Yanomami para exploração de
ouro, além de desassistir dolosamente esses indígenas.
No entanto, vários fatos indicam ter
ocorrido genocídio, em vista da perseguição voltada à etnia Yanomami. Como
mostra o jornalista Lira Neto, desde homologada a reserva indígena Terra
Yanomami, essa população foi perseguida por Jair Bolsonaro, que, deputado
federal, propôs em 1993 tornar sem efeito decreto instituidor da reserva. Em
1995, reeleito, retornou com essa proposta, à qual pediu regime de urgência. Em
1998, Bolsonaro reapresenta a proposta e diz: “A Cavalaria brasileira foi muito
incompetente.” “Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou
seus índios.”
Bolsonaro paralisou a demarcação de terras
indígenas e a Funai baixou a Instrução Normativa n.º 9/20, permitindo a emissão
de títulos de propriedade a invasores.
Para atender aos empreendedores, Bolsonaro
enviou ao Congresso o Projeto de Lei n.º 191/20, permitindo a exploração de
minério em terras indígenas, que não caminhou. No entanto, por via de instrução
conjunta da Funai e do Ibama, de fevereiro de 2021, buscou-se driblar a
Constituição permitindo a exploração de minério por entidade formada por
indígenas e não indígenas, dispensados licenciamento ambiental e autorização do
Congresso, como exige a Constituição.
Na pandemia, o descaso com os índios foi
patente e destacado em parecer à CPI por comissão que coordenei. Bolsonaro
vetou, no projeto de lei relativo à assistência aos índios, o fornecimento de
água potável; a distribuição gratuita de materiais de higiene; e a oferta
emergencial de leitos hospitalares.
Foram ignoradas: dezenas de alertas do
Ministério Público e de entidades acerca da calamidade sanitária dos Yanomamis;
a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos de retirada dos
invasores; e decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no mesmo sentido, em
voto de Roberto Barroso.
Brota das condutas de Bolsonaro e de seu
governo a revelação da intencionalidade comandada pelo desprezo à vida dos
indígenas e, em especial, dos Yanomamis, submetidos, por causa de sua condição
étnica, a condições capazes de os destruir, sendo visível o fim específico da
figura do genocídio, como bem suspeita o STF.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade
de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Excelente texto!
ResponderExcluirA sistemática perseguição de Bolsonaro aos índios e aos ianomâmis em especial:
"orientação governamental de incentivar e proteger a invasão de terras dos Yanomami para exploração de ouro, além de desassistir dolosamente esses indígenas."
Mas o GENOCIDA não atuou sozinho: Damares Alves, Ricardo Salles e dezenas de militares e policiais nomeados para postos de comando na Funai, no Ibama e no Ministério do Meio Ambiente foram CÚMPLICES DO GENOCÍDIO!
E certamente também foram cúmplices alguns canalhas dirigentes de órgãos do Ministério de Minas e Energia que controlam (?) a mineração na Amazônia.
ResponderExcluirPois é.
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