sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Erros do passado assombram nova gestão do BNDES

O Globo

Ao defender mudança na TLP e banco ‘mais atuante’, Mercadante traz de volta fantasmas das gestões petistas

Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se insurgia contra a autonomia do Banco Central e a taxa de juros, o economista Aloizio Mercadante assumiu o BNDES avisando que deseja um banco “mais atuante”, particularmente no apoio à indústria e às empresas de menor porte. Argumentou que o Brasil não pode ser apenas a “fazenda do mundo”. Há um sentimento entre economistas ligados ao PT de que o BNDES deve ser o vetor da “reindustrialização” do Brasil. As ideias e o histórico de Mercadante despertam o receio de que se repitam erros cometidos no passado.

“Na cabeça do Lula existe um BNDES velho; os tempos são novos, e o banco precisa refletir isso”, disse ao GLOBO o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do BNDES. O banco é uma fonte importante de crédito para projetos de longo prazo, incertos para o capital privado. Mas sempre foi usado para favorecer empresários próximos ao poder, criando distorções no mercado de crédito de impacto deletério para todos os demais investidores e consumidores.

Durante as gestões petistas, os desembolsos anuais do BNDES atingiram o patamar de 4,3% do PIB. Desse montante, 80% foram destinados a grandes empresas. Entre 2008 e 2014, o BNDES recebeu R$ 570 bilhões em recursos públicos, e o Tesouro teve de tomar emprestado a taxas de mercado R$ 184 bilhões para financiar os subsídios do banco. Os principais mecanismos usados pelas gestões petistas para subsidiar o crédito eram a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) — os “juros camaradas” — e programas sob medida para projetos de interesse político, como o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) ou o Inovar-Auto.

O fim da TJLP, substituída em 2018 pela Taxa de Longo Prazo (TLP), do PSI e a reorganização do BNDES na gestão Michel Temer propiciaram o crescimento do mercado de crédito privado e a redução geral nas taxas de juros. Ao mencionar a necessidade de mudanças na TLP em seu discurso de posse, Mercadante despertou a preocupação de que o BNDES volte a ser um instrumento de favorecimento político. Como escreveu a economista Zeina Latif em sua coluna no GLOBO: “É necessário cuidado para não abrir precedentes perigosos, como a mudança do cálculo da TLP para setores específicos ou o aumento do crédito em áreas que fogem à missão do banco”.

Qualquer subsídio deveria, de acordo com o economista Samuel Pessôa, do Ibre/FGV, ser aprovado explicitamente pelo Congresso e constar do Orçamento, como acontece com o crédito agrícola. E não faz sentido investir no fetiche da “reindustrialização” apenas para agradar a setores dependentes do Estado. O mais sensato, sugere Latif, seria concentrar o foco em segmentos de risco elevado, portanto subfinanciados, como infraestrutura, inovação e transição energética. A palavra de ordem, diz ela, precisa ser “avanço, e não mudança de rumo”.

Os recursos são finitos, e gastar mais que o recomendado pela sensatez fiscal gera inflação, recessão e desemprego. Subsídios sempre criam privilégios para uns à custa de todos os demais. “Para incluir os pobres no Orçamento da União, é preciso retirar os ricos, quer dizer, retirar diferentes subsídios, ineficientes e custosos ao país”, diz a economista Maria Silvia Bastos, ex-presidente do banco. O BNDES do futuro precisa fazer escolhas diferentes das que fez no passado.

Sem meio de sustento, garimpeiros voltarão para as terras ianomâmis

O Globo

Não se discute a necessidade de retirá-los da reserva indígena, mas é preciso oferecer-lhes alternativas

O governo começou a operação de retirada dos garimpeiros das terras ianomâmis cortando suas linhas de suprimento nos rios e vigiando o espaço aéreo sobre a região. O estrangulamento dos garimpos, privados de água limpa e alimentos, já cumpre parte importante da tarefa de retirar 20 mil garimpeiros da região. Se houver remanescentes, as Forças Armadas terão de entrar em ação. O importante é tratar com urgência de um plano para ocupar a população de garimpeiros desprovidos do sustento. O maior risco é o crime organizado presente na região aliciá-los para atuar noutras atividades ilegais, como desmatamento ou pesca clandestina.

Tal plano precisará da mobilização de vários ministérios. Será necessário levar em conta que Boa Vista, capital de Roraima, tem ligações estreitas com o garimpo, testemunhou e se beneficiou de diversas corridas do ouro. No fim da década de 1980, pistas clandestinas também rasgaram a floresta nas terras ianomâmis, e cerca de 40 mil garimpeiros chegaram a entrar na reserva. É sugestivo que, na Praça do Centro Cívico, em Boa Vista, haja a estátua de um homem com uma bateia em homenagem ao garimpeiro, visto com simpatia pela população e apoiado pelo governador de Roraima, Antônio Denarium (PP).

A atual corrida do ouro tem, contudo, uma característica dramática a que todos os brasileiros foram expostos nas últimas semanas. Ela atinge os indígenas de forma mais direta pela transmissão de doenças contra as quais eles não dispõem de barreiras imunológicas como os habitantes das cidades e pela contaminação dos rios com o mercúrio que envenena os peixes e destrói plantações. O resultado tem sido a fome e a morte de ianomâmis por inanição, sobretudo crianças.

É imprescindível, por isso, identificar os donos dos garimpos, que têm capacidade financeira para comprar o caro equipamento usado na busca do metal por empregados de baixa qualificação, sob o tacão de capatazes contratados por controladores da exploração, em geral protegidos por conexões políticas locais.

Reportagem do GLOBO revelou que, até 2020, o ouro ianomâmi comprado por lojas especializadas nesse comércio em Boa Vista representava 20% do que a economia de Roraima vendia para fora do estado. Tal contribuição foi extinta no ano passado, devido às operações policiais. O ouro não deixou de sair da reserva indígena, mas passou a ser contrabandeado.

Não se discute que os garimpeiros precisam ser retirados da reserva ianomâmi, por espalharem miséria e doenças entre os indígenas. Mas é preciso que o governo, com apoio local, ofereça alternativas econômicas aos garimpeiros, para evitar que retornem à reserva trazendo ainda mais danos à população indígena.

Herança à paulista

Folha de S. Paulo

Tarcísio acerta quando se guia por interesse público em vez de ideologia

O governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), apoiou-se na responsabilidade orçamentária ao vetar o projeto de lei que reduzia o imposto sobre doações e heranças (ITCMD) no estado. Haveria mais argumentos a utilizar, mas o fundamental é que a decisão se amparou em critérios técnicos, acima de ideologias.

Tarcísio foi diplomático ao justificar formalmente a medida, mencionando os "elevados propósitos" do legislador —o autor do projeto é o deputado estadual Frederico d’Ávila (PSL), identificado com o bolsonarismo que garantiu a vitória eleitoral do governador.

Conforme aponta a mensagem de veto, o projeto —que pretendia baixar as alíquotas do ITCMD de 4% para 1%, nas heranças, e 0,5% nas doações— subtrairia R$ 4 bilhões anuais da arrecadação paulista, sem indicar um corte correspondente de despesas estaduais como determina a legislação.

A exposição de motivos é caridosa diante da desfaçatez da proposta aprovada pela Assembleia Legislativa. Tratava-se de tentativa descarada de favorecer a parcela mais rica dos contribuintes, amparada em um arrazoado tosco que pretendia emular teses liberais.

O imposto sobre heranças rendeu pouco mais de R$ 4 bilhões aos cofres paulistas no ano passado, parcela minúscula de uma receita de R$ 321 bilhões. A alíquota local é metade do teto nacional de 8%, que nada tem de elevado para os padrões internacionais.

Embora eleito com apoio decisivo do bolsonarismo, Tarcísio mostra sinais positivos de moderação e pragmatismo neste início de governo. A demonstração mais evidente é a proeminência do secretário de Governo, Gilberto Kassab (PSD), cujo partido faz parte da base aliada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O governador, até aqui, parece disposto a manter relação institucional com Brasília. Um exemplo são as negociações para a privatização do porto de Santos, que enfrenta a oposição do governo federal.

Foi positivo o recuo no intento de abandonar o programa de câmeras corporais para os policiais militares, mesmo tendo nomeado um nome da linha-dura da corporação, Guilherme Derrite (PL), para a Secretaria da Segurança Pública.

Tarcísio também se pautou pelo interesse público ao sancionar a lei que permite a distribuição pelo SUS no estado de medicamentos produzidos a partir de derivados de maconha, um tema que poderia gerar desgaste com a parcela mais conservadora do eleitorado.

É cedo, claro, para uma avaliação de seu governo. Pode-se afirmar, ao menos, que as chances de ser bem-sucedido crescerão se houver respeito ao conhecimento e à experiência administrativa.

Mais que o terremoto

Folha de S. Paulo

Contexto político dramático se mistura ao sismo que atingiu Turquia e Síria

Eventos geológicos inevitáveis de um planeta formado por placas tectônicas que se atritam enquanto flutuam sobre mares de massa incandescente, terremotos por vezes trazem mais do que destruição e morte ao registro histórico.

O mais famoso sismo europeu, o de Lisboa em 1775, marcou a psiquê do continente com debates filosóficos acerca da natureza divina e do cenário português —com o projeto arquitetônico do despotismo esclarecido de Marquês de Pombal, o reconstrutor da capital.

Geralmente, contudo, apenas aspectos trevosos são colocados em evidência com essas tragédias, como comprova a que se abateu sobre Turquia e Síria, na segunda (7).

Ali, a expressão idiomática inglesa ganha sentido claro mesmo em português: foi adicionado insulto à injúria. Não bastassem os mais de 20 mil mortos contados até agora, o incidente se mistura à turbulência política da região.

A situação é mais grave na Síria, país assolado por uma guerra civil desde 2011. O efeito do conflito se espraia sobre o do terremoto.

Primeiro, porque segundo a ONU as áreas afetadas concentram cerca de 4 milhões de sírios dependentes de ajuda externa, além de 64% dos 5,4 milhões de refugiados dos combates, que procuraram abrigo justamente na vizinha Turquia.

Somadas a vítimas com vulnerabilidades diversas, a Organização Mundial da Saúde verifica 23 milhões de pessoas sob risco imediato de desabastecimento e doenças.

Segundo, a ditadura de Bashar al-Assad impôs a centralização dos esforços de ajuda, o que impede na prática o alcance a regiões ainda dominadas por rebeldes jihadistas.

Já na Turquia, mais estruturada, a resposta vista como fraca pela população coloca pressão sobre o governo autocrático de Recep Tayyp Erdogan, homem-forte desde 2003.

É possível que o presidente adie as eleições gerais de 14 de maio, nas quais deverá concorrer, sob o pretexto da prioridade humanitária. Isso irá demonstrar o temor do impacto do sismo sobre sua posição, até aqui desafiada, mas considerada forte o suficiente para a vitória.

Ancara está no centro de tensões regionais, equilibrando-se entre o apoio à Ucrânia e a boa relação com a Rússia. Ademais, enfrenta a maior inflação dos últimos 25 anos. Erdogan, por fim, olha a própria história: sua ascensão ao poder veio justamente na esteira de quatro anos de descontentamento com a reação oficial ao terrível terremoto de 1999 no país.

Caso no STF resume mazelas nacionais

O Estado de S. Paulo.

Decisão do Supremo sobre eficácia da coisa julgada explicita a urgente necessidade de um novo sistema tributário, simples e funcional, e de um Judiciário menos lento e menos imprevisível

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a eficácia da coisa julgada em matéria tributária traz problemas sérios. Empresas que recorreram ao Judiciário com boa-fé e obtiveram suas decisões definitivas favoráveis terão seus direitos perdidos por força de um posterior posicionamento do Judiciário em processo com repercussão geral. Aquilo que parecia definitivo – que a própria Justiça tinha dito que era definitivo – já não é tão definitivo assim. Sempre estará sujeito a uma nova avaliação do Supremo. A sensação é de perplexidade. Há ainda alguma segurança jurídica?

Ao mesmo tempo, é de reconhecer que, caso o Supremo desse uma decisão em sentido oposto, autorizando a prevalência da coisa julgada em ação individual sobre a orientação em processo com repercussão geral, outros sérios problemas seriam criados. Haveria duas classes de contribuintes: a dos que têm de se submeter ao regime geral (e precisam pagar seus impostos) e a dos que conseguiram um regime especial pela via judicial (e não precisam pagar impostos que todos os outros têm de pagar). A decisão desrespeitaria o princípio fundamental da igualdade de todos perante a lei. Além disso, essa diferenciação seria profundamente disfuncional, ao criar um fortíssimo estímulo à judicialização das questões tributárias.

Não havia solução fácil. No entanto, mais do que uma disputa entre argumentos favoráveis e contrários, a decisão do STF sobre a coisa julgada suscita outra série de questões. De forma muito viva, ela explicita o caráter absolutamente insustentável da situação dos tributos no País.

É preciso ter, com urgência, um sistema tributário mais simples e funcional, que não gere tantas dúvidas, tantas áreas cinzentas, tantas possibilidades de interpretação. O atual regime é ruim para todos, exceto talvez para quem vive da judicialização das questões tributárias. A responsabilidade por prover um novo sistema tributário é da sociedade e, de forma muito concreta, do Congresso e do Palácio do Planalto.

A revolta suscitada pela decisão do Supremo deve ser estímulo para que a sociedade civil exija do Legislativo e do Executivo federal a aprovação urgente de uma reforma tributária séria, simples e clara. Esse é o caminho para que o Judiciário não precise ser tão acionado – para que se torne contraproducente acioná-lo – e, assim, ele tenha, na prática, menos poder sobre os tributos. Mas para isso o Congresso precisa trabalhar.

A decisão do STF desvela também a incrível disfuncionalidade do sistema de Justiça: lento, caro e arbitrário. Ao privilegiar a eficácia dos processos com repercussão geral, o STF explicita um velho problema da Justiça brasileira. Com enorme frequência, os juízes e tribunais não seguem a jurisprudência e as orientações dos tribunais superiores. Muitas vezes, a independência dos magistrados é entendida como sinônimo de autonomia absoluta. Cada vara seria um feudo. A decisão do STF é um chamado, sob pena de colapso do sistema, para uma aplicação do Direito mais uniforme, menos randômica, mais fundamentada. É dessa insegurança que os contribuintes, com toda a razão, se queixam. A Justiça não pode ser uma loteria.

A decisão do STF é também alerta para os próprios ministros da Corte. Se as ações com repercussão geral têm tanta força, prevalecendo até mesmo sobre decisões transitadas em julgado, é preciso prover um novo patamar de estabilidade à jurisprudência. Não é possível mudar tanto e com tanta velocidade. O exemplo de respeito pelas decisões do Supremo deve começar no próprio tribunal, também por uma compreensão mais institucional da colegialidade.

O recente julgamento do Supremo joga luzes sobre a demora da prestação jurisdicional. Ela é tão drástica, com efeitos tão perversos sobre muitas empresas, não porque seus fundamentos estejam equivocados, mas porque a Justiça demora muito.

Com sua decisão, o STF exige, com razão, o respeito de todos às suas orientações. Que ele e toda a Justiça respeitem o cidadão, sem tantos atrasos e tanta imprevisibilidade.

É preciso aperfeiçoar o MEI

O Estado de S. Paulo.

Estudo do FGV Ibre aponta distorções e falta de foco no programa criado para promover a inclusão previdenciária de trabalhadores que atuam na informalidade

Políticas públicas bem-intencionadas podem gerar distorções e consumir recursos que seriam mais eficazes na redução de desigualdades se fossem aplicados de forma diferente. De fato, fazer o dinheiro do Orçamento chegar a quem mais precisa não é nada fácil − e o Brasil, infelizmente, coleciona exemplos de boas ideias que acabam produzindo efeitos inversos aos desejados. Um novo estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre) joga luz sobre a necessidade de aperfeiçoamentos no regime do Microempreendedor Individual (MEI), tema que merece atenção do governo e do Congresso.

Criado em 2008, o MEI foi concebido para induzir a formalização de trabalhadores autônomos de baixa renda, viabilizando a sua inclusão previdenciária e incentivando o microempreendedorismo. Mas o que deveria ser uma iniciativa focalizada nas parcelas mais vulneráveis dos empreendedores informais tem servido também a trabalhadores com perfil de escolaridade e renda superior ao de quem tem emprego formal. Eis o que indica a pesquisa realizada pelos economistas Fernando Veloso e Fernando de Holanda Barbosa Filho, que se valeram de um modelo estatístico para superar a falta de dados socioeconômicos detalhados nos registros do governo.

As estimativas, referentes ao segundo trimestre de 2022, apontam para uma realidade distinta daquela que inspirou a criação do MEI: enquanto 31,3% dos microempreendedores individuais tinham ensino superior completo, esse índice era de 15,7% entre o conjunto de trabalhadores por conta própria, de 12,7% entre empregados sem carteira assinada e de 22,4% entre quem tinha carteira assinada. No quesito renda, repetiu-se padrão semelhante, com 56,4% dos microempreendedores individuais ganhando acima de dois salários mínimos por mês, ante 32,1% dos trabalhadores formais, 27,6% do total de trabalhadores por conta própria e 15,6% dos empregados sem carteira. Resta evidente que o perfil socioeconômico de quem era MEI superava o de outros trabalhadores informais. Uma distorção.

Vale notar que o regime de MEI depende de subsídios para existir, pois a contribuição cobrada dos microempreendedores individuais é insuficiente para cobrir os benefícios que o regime oferece: aposentadoria no valor de um salário mínimo, auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e salário maternidade, entre outros. A conta só fecha com recursos adicionais.

Em artigo publicado na revista Conjuntura Econômica, o pesquisador Luiz Guilherme Schymura, do FGV Ibre, lembrou que o número de participantes do MEI saltou de 44,2 mil, em 2009, para 14,8 milhões no ano passado. À medida que essas pessoas se aposentarem, o subsídio deverá aumentar. Sem falar que mais da metade dos filiados é inadimplente, fazendo crescer a necessidade de aportes cada vez maiores. Schymura criticou as regras atuais: “Trata-se de um subsídio maciço e um grande custo fiscal que se joga para as próximas gerações, em relação a um programa que tem todos os indícios de focalizar muito mal o seu público pretendido.”

A preocupação com a falta de foco do MEI também foi explicitada pelos especialistas em previdência Rogério Nagamine Costanzi e Otávio Sidone, em capítulo do livro Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil, organizado por Marcos Mendes. A despeito das boas intenções e de avanços viabilizados pelo MEI, eles observaram que somente 16% dos participantes estavam entre os 50% mais pobres do País. Alertaram ainda para outro problema: a indesejável migração de contribuintes regulares da Previdência atraídos pelas condições mais favoráveis do regime para microempreendedores individuais, algo que vai na contramão da proposta de inclusão previdenciária, além de afetar negativamente as contas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Um princípio elementar de qualquer política pública é basear-se em evidências, e elas estão à vista de todos: há motivos de sobra para rever e aperfeiçoar o MEI, se o objetivo é realmente ajudar os que mais precisam.

A transparência não é opcional

O Estado de S. Paulo.

Lula pode dispensar o porta-voz da Presidência, mas não pode se desobrigar do escrutínio da sociedade

É lamentável a decisão do presidente Lula da Silva de seguir o movimento de inflexão promovido por seu antecessor e dispensar os serviços de um porta-voz da Presidência. Perdem Lula, a sociedade e a democracia.

Em agosto de 2020, Jair Bolsonaro exonerou o general Otávio Rêgo Barros da função de porta-voz porque o militar era em tudo diferente dele, razão pela qual ganhou mais projeção do que deveria – pecado mortal para qualquer pessoa que tenha trabalhado próxima ao “mito”.

A cordialidade e o espírito público demonstrados por Rêgo Barros no curto período em que foi a voz oficial da Presidência não tinham lugar em um governo marcado pela hostilidade ao jornalismo profissional, pela aversão à transparência e pela instigação de confrontos incessantes com segmentos da sociedade.

Desde então, a figura do porta-voz foi abolida da vida política nacional.

No atual governo, ainda que por razões presumivelmente diferentes – afinal, Lula é um sujeito verboso por natureza –, o porta-voz também parece carecer de prestígio. “No momento, não sentimos a necessidade específica do cargo de porta-voz”, afirmou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) em nota ao Estadão. Ora, ter ou não um porta-voz da Presidência não se trata de uma “necessidade específica” do governo de turno, mas, antes, de uma boa prática democrática.

A figura do porta-voz da Presidência é tão imbricada com a própria ideia de democracia, por seu evidente liame com o princípio da transparência na administração pública, que ninguém consegue imaginar, por exemplo, um dia normal na Casa Branca sem os briefings regulares conduzidos pela Secretaria de Imprensa dos EUA.

Até Donald Trump, personificação das maiores ameaças à democracia norte-americana na história recente, teve não um, mas quatro press secretaries ao longo do mandato. Dia sim e outro também, esses servidores tinham de confrontar as perguntas dos jornalistas – a rigor, da sociedade – e prestar contas das decisões e das omissões do governo federal.

Não ter um porta-voz, portanto, pode ser uma decisão bastante confortável para Lula se o presidente não quer ser escrutinado diariamente por suas decisões, mas é péssima para o vigor democrático da sociedade e para o registro histórico.

Ademais, como disse o general Rêgo Barros ao Estadão, a figura do porta-voz é “ferramenta necessária à estrutura do poder” por servir como espécie de anteparo da autoridade presidencial aos “embates desnecessários” com os jornalistas.

Na República, o governante tem de prestar contas aos cidadãos. Em encontros periódicos com o portavoz da Presidência, jornalistas fazem as perguntas que estão nas ruas, vocalizando receios, dúvidas, angústias e esperanças da sociedade. Por óbvio, esse escrutínio há de ser respeitoso, mas nem sempre é agradável, razão pela qual, tradicionalmente, a função de porta-voz é exercida no Brasil por diplomatas e jornalistas, comunicadores hábeis por dever de ofício.

Lula não deveria, mas pode dispensar o porta-voz para dialogar institucionalmente com a sociedade. O que não pode, jamais, é se desobrigar da transparência.

Além da lei das estatais, agências correm risco

Valor Econômico

O presidente parece disposto a pagar o preço dos acordos com o Centrão

A abertura do governo aos partidos aliados e mesmo recalcitrantes, pelas vias formais de cargos e ministérios, está fazendo o Executivo e o Legislativo ampliar de tal maneira as possibilidades de acomodação a ponto de tornar inevitáveis no futuro problemas de coordenação e agilidade na tomada de decisões. O governo de Lula voltou às origens, com 37 ministros alojados em 30 ministérios, mais três secretarias e quatro órgãos equivalentes a pastas. Seis deles foram reservados ao PSD, MDB e União Brasil, partido dividido que ainda não se sente representado no governo. Agora, parte-se para a divisão no segundo escalão, autarquias e estatais.

O loteamento do Estado, que no primeiro governo de Lula privilegiou o PT, agora é mais “democrático”, pois a coalizão governista é minoritária em uma Câmara dominada pelas legendas fisiológicas do Centrão. A moeda corrente das alianças voltou a ser a distribuição de cargos, depois que o PT flertou com a aceitação do orçamento secreto, antes dele ser fulminado pelo Supremo Tribunal Federal.

Para arrumar espaço a indicações político-partidárias, as restrições existentes têm de ser derrubadas, ou tornadas flexíveis a ponto da inocuidade. Um dos mais sólidos pilares da racionalidade administrativa, a lei das estatais, ruiu na Câmara ao apagar das luzes da legislatura anterior, com uma emenda de última hora a um projeto que tratava de publicidade das estatais. O fim prático da quarentena de 3 anos para ocupar cargos de direção das empresas estatais abrirá espaço para aventureiros e politicagens de sempre e o clima é propício a considerar a vedação legal como “criminalização da política”.

O projeto está parado no Senado e não serão os partidos do Centrão ou o PT que se oporão a distorcer a lei das estatais se as mudanças podem beneficiá-los. São mais de 450 cargos influentes e bem remunerados em jogo e da parte do governo não parece haver o menor interesse em preservar os limites legais.

Um alvo próximo são as agências reguladoras. Logo no início de seu primeiro governo, Lula se estranhou com elas, por não estarem subordinadas ao governo. Lula não interferiu em seus dois mandatos, mas depois as agências foram sendo aparelhadas por indicações políticas e diluindo seu caráter técnico. Uma das formas corriqueiras de miná-las por dentro foi a indicação para órgãos reguladores de participantes que trabalharam na iniciativa privada em setores econômicos por elas regulados.

Mesmo assim, sua independência provou-se valiosa, como mostrou o exemplo da Anvisa durante a pandemia, opondo-se ao charlatanismo homicida do então presidente Jair Bolsonaro. Agora, o deputado Danilo Forte (União Brasil-CE) pegou carona na MP 1154, que estabelece nova organização da Presidência e dos ministérios, e apresentou a emenda 54, subordinando as agências reguladoras aos ministérios, retirando-lhes a edição de “atos normativos” e entregando-os a conselhos políticos. Em sua composição entrariam representantes das pastas, de setores regulados, da academia e dos consumidores.

Decisões técnicas e especializadas, se a emenda vingar, serão contornadas ou escamoteadas por influências políticas e privadas, esvaziando os órgãos reguladores e reduzindo seus pareceres a mais uma opinião entre outras. A emenda anula poderes das agências, estando implícito que os ministérios estão muito mais abertos a influências políticas do que as agências em sua configuração legal. Ainda que isso possa não redundar em cargos para loteamento (ao que se sabe até agora), abre caminho para lobbies variados em decisões vitais para o funcionamento da economia.

A Câmara dos Deputados, dirigida por Lira, reeleito para o cargo com apoio quase unânime dos partidos (apenas dois não votaram nele), está tendo problemas para contentar todo mundo, em especial o maior partido da Casa, o PL, inchado pelos bolsonaristas e que conta com 99 deputados. Ontem a Câmara aprovou projeto de resolução para criar mais cinco comissões, levando o total a 30. No início eram 12 comissões. O relator, Hugo Motta (Republicanos), deu justificativa original: o aumento levava em conta a proliferação dos ministérios. Um efeito é que os projetos terão de passar por mais comissões do que antes.

“Quanto mais a gente demora para encontrar uma solução, seja para MP ou projeto de lei, mais fica caro aprovar aquelas coisas e fica cravada a desarmonia”, disse Lula aos líderes da base aliada. O presidente parece disposto a pagar o preço dos acordos com o Centrão.

 

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