quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Roberto DaMatta - Que tal falar do carnaval?

O Globo

O óbvio ululante é procurar vê-lo como um dos fios com os quais construímos o lado mais denso da nossa identidade

Falamos infindavelmente de “política”, deixando de lado a festa maior que chega neste fim de semana e continua sendo assunto de difícil entendimento. Sobretudo para nós, brasileiros, para quem a festa de Momo tem uma presença sistemática (lida como positiva ou alienada) nas nossas vidas.

Falar do carnaval é ser obrigado a discorrer sobre uma realidade ainda mais complicada: nosso sempre fugaz e indomesticável Brasil.

O elo entre o carnaval e o Brasil tem muitas máscaras. Tanto o carnaval pertence ao Brasil — não há como negar um “carnaval brasileiro” com história, gestos, música e outros tantos elementos particulares — quanto o Brasil pertence ao carnaval!

Esse carnaval que — com seu maravilhoso espírito antiburguês, com sua atitude contrária à razão utilitária e com seu afeto pelas ambiguidades, pelas transformações míticas e, sobretudo, pela possibilidade de trocar radical e democraticamente de lugar — não tem rival como modelo de um “contrato social” brasileiro.

O carnaval é constituído e constitutivo daquilo que chamamos de “Brasil” ou “realidade brasileira”. Pois o que seria o Brasil sem carnaval, sem cachaça, sem futebol, sem macumba, sem jogo do bicho, sem sua ladra politicagem, sem jeitinho, sem “não fazer nada” e sem salvacionismos? Sem esse punhado de instituições órfãs de pedigree político-acadêmico que nossos “caga-regras” conhecem como a palma de suas mãos?

Quantos de nós seríamos capazes de caracterizar o Brasil sem falar em carnaval? E, no entanto, quantos pensaram no carnaval — amnesiando a economia política — para tentar desenhar o Brasil?

Embora o carnaval seja um hóspede não convidado de nossas historiografia e sociologia oficiais, pois — se a memória não me falha — fui dos poucos a levá-lo a sério, estudando-o de uma perspectiva simbólica e comparativa, sua presença em outros setores da nossa vida social sempre foi flagrante. Aliás, ninguém exprimiu melhor a intimidade entre Brasil e carnaval que Lamartine Babo, na marchinha composta em 1934, significativamente intitulada “História do Brasil”. Nela, ele faz a pergunta crucial: Quem foi que inventou o Brasil?/Foi Seu Cabral… Foi Seu Cabral/No dia 21 de abril…/Dois meses, depois do carnaval!

Seria Lamartine Babo uma antecipação do pensamento pós-moderno? Nem tanto, mas sua obra é uma mostra do “óbvio ululante”, em que os intelectuais politicamente corretos e donos da verdade odeiam tocar. Seja porque não sabem como engavetá-lo, seja porque o riso satírico de Momo os embaraça. Afinal, o carnaval não cabe nas categorias que definem weberianamente o racional como elo entre meios e fins. Como explicar essa explosiva alegria quando deveria haver somente tristeza?

E, no entanto, o carnaval é o rito de passagem temporal que nos ajuda a transitar do Advento e, largando a carne, aceitamos as penitências de Dona Quaresma. Ele é também o que Alexis de Tocqueville chamava, com Rousseau, de “hábito do coração”, e Nélson Rodrigues denominava “óbvio ululante” — essa coisa tão próxima que não é — ou não pode — ser vista.

Quem sabe você que olha sem ler estas linhas não gostaria de ouvir esse óbvio ululante do carnaval, simplesmente um grito para compreender o Brasil? Pois, para parafrasear Jorge Luis Borges, a despeito do sentimento derrotista, algumas pessoas descobriam verdades eternas no Rio de Janeiro e no Brasil...

No caso do carnaval, o óbvio ululante não é seu estudo como festa popular de feitio “alienado” e “pré-político”, prestes a ser comido pela indústria de comunicação e pelo discurso ainda mais fantasioso e cretino dos salvadores da pátria. Muito pelo contrário. É procurar vê-lo como um dos fios com que construímos o lado mais denso da nossa identidade.

Mas sobre isso eu só falo depois do carnaval...

 

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