segunda-feira, 20 de março de 2023

Ana Cristina Rosa - Ignorância e crueldade

Folha de S. Paulo

Estado deve ser responsabilizado nos casos de trabalho análogo à escravidão

O número de resgates de trabalhadores em situação degradante e análoga à escravidão —eufemismo para a "escravização contemporânea"— bateu recorde no primeiro bimestre de 2023.

Num país de miseráveis, ultimamente não há semana em que o noticiário deixe de trazer a descoberta de pessoas aliciadas com falsas promessas de trabalho decente para acabarem submetidas a jornadas de trabalho exaustivas, em condições precárias, algumas vezes mediante ameaças e castigos físicos.

Não bastasse isso tudo, em muitos dos casos os libertos —não me ocorre termo mais apropriado— são mantidos em cativeiro por conta de dívidas contraídas com os empregadores.

Mas o que é que está acontecendo no Brasil?

Como não houve ampliação na fiscalização, talvez a consciência das pessoas tenha aumentado e, com ela, o número de denúncias tenha se elevado também. Espero que seja isso.

Mas temo que o crescimento seja mesmo da iniquidade dos que, sem dó ou piedade, não perdem oportunidade de explorar e tirar vantagem da penúria alheia. Tanto que, apesar do cenário pavoroso, há interessados em acabar com o Ministério Público do Trabalho.

Entre os "escravizados contemporâneos" tem gente de várias idades, de todas as cores. Contudo, a maioria é formada por homens negros e jovens.

E, diante do que se tem observado, a crueldade parece estar valendo a pena. O que são R$ 7 milhões em indenizações comparados ao faturamento anual bilionário das vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, por exemplo?

Além da legislação nacional, o Brasil —última nação das Américas a abolir a escravidão, é bom lembrar— ratificou uma porção de pactos, declarações, convenções e tratados internacionais assumindo o compromisso de combater essa abominação que é o trabalho escravo. Talvez tenha passado da hora de responsabilizar o Estado por essa violação de direitos humanos.

 

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