segunda-feira, 20 de março de 2023

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira* - Coisa pública não é coisa minha

O Estado de S. Paulo.

O comportamento do agente público deve se pautar pela obediência ao princípio de que não pode dispor como quiser do acervo que administra

Muito recentemente vimos a baderna e a selvageria colocarem em risco as instituições nacionais. A reação dos democratas e dos próprios Poderes constituídos, capitaneados pelo Judiciário, impediu que o caos e a barbárie se instalassem. Seria mais um passo na jornada próinstalação de um regime ditatorial para quem se considerava com direitos despóticos e ilimitados de governança.

Os bens públicos das Casas do Legislativo e do Supremo Tribunal Federal (STF) foram criminosamente danificados. A República foi atingida em seu conceito fundamental de “coisa pública”. Vandalizaram bens da sociedade, bens do povo.

Dois até agora indecifráveis enigmas são a origem e o porquê do apoio emprestado às tentativas de imposição da desordem, da intolerância e do ódio no seio da sociedade brasileira. Não me refiro apenas à adesão dada aos responsáveis políticos, mas sim à concordância com um pensamento não civilizatório transformado em ações concretas: o armamento distribuído ao povo (quase 1 milhão de armas); a negação da ciência na pandemia; a insensibilidade em face dos 700 mil mortos pela covid-19, e quem despreza a morte não preza a vida, a alheia; o abandono e o menosprezo pela educação, pelo meio ambiente, pela cultura; a tentativa de destruir avanços exemplares para o mundo nos campos das eleições (urnas eletrônicas) e da saúde (sistema de vacinação); os estímulos à destruição das instituições pátrias; a conclamação à ruptura do Estado de Direito; e várias outras condutas atentatórias ao regime, à paz e à harmonia sociais. Ideias e comportamentos que desaguaram no 8 de Janeiro.

Esses apoiadores, muitos esclarecidos e com capacidade de bem discernir o certo do errado na vida pública, se deixaram conduzir por um discurso repleto de mentiras e invencionices, distante da realidade nacional e contrário à lógica e ao bom senso. Sempre em nome de justificativas abstratas, inconsistentes e falaciosas para a opção que faziam. Por exemplo, passaram a afirmar que o seu voto era contra o risco “vermelho”: o comunismo seria implantado. Argumento obtuso, mentiroso, falso, ridículo, próprio dos que carecem de razões para as suas inconcebíveis escolhas e que põe em dúvida a sua inteligência e sua honestidade.

O seu ridículo se acentua na medida em que representa a negação da própria história recente. O mesmo grupo político contra quem investem esteve no poder durante uma década, e seus integrantes não atuaram como perigosos militantes stalinistas nem atentaram contra o regime democrático. Não invadiram nem destruíram órgãos públicos. Não conclamaram as Forças Armadas a intervir no regime. Não se comportaram como trogloditas primatas prontos a destruir e matar com vistas à ruína das instituições e da própria sociedade. Eles não.

Os correligionários do último governo, além da barbárie que apoiaram, ignoram que seus integrantes não tiveram nenhum escrúpulo nem respeito por um princípio basilar do regime republicano: o governante administra bens alheios.

República tem origem no latim res publica, que significa coisa pública. O que é público é de todos e, portanto, não é de ninguém. Aqueles que se propõem a militar na política ou na administração pública têm a obrigação de saber que vão gerir coisa alheia. Trata-se de uma noção básica, primária, essencial. Caso o administrador não tenha consciência precisa desse aspecto, não estará habilitado a assumir as funções.

Mas a questão não se resume apenas a uma noção teórica desta fundamental característica do cargo público. O conceito deve externar uma conduta pessoal que lhe seja consentânea. Vale dizer, o comportamento do agente público deve se pautar pela rigorosa obediência ao princípio de que não pode dispor como quiser do acervo que administra.

Quero destacar apenas uma das formas mais habituais de ataque ao erário. A imprensa vem noticiando com constância a despudorada utilização dos chamados cartões corporativos. Está-se revelando um abuso de gastos jamais visto na história da República. O cartão transformou-se em passaporte para a entrada livre nos cofres da Nação.

De hotéis e restaurantes de luxo, passando por grifes famosas, até a compra de guloseimas, em especial sorvetes, esses gastos representam um exemplo do desavergonhado desrespeito para com a coisa pública.

Alguém dirá que a lei autoriza o uso dos cartões. Sim, mas o uso restrito às despesas relacionadas ao exercício das funções, e não o uso descriterioso, injustificado, ligado a caprichos consumistas, uso que não fariam se os gastos saíssem de seus bolsos.

Esses esbanjadores do dinheiro alheio deveriam se espelhar nos exemplos, entre outros, de dom Pedro II, que várias vezes viajou para fora do País às suas expensas ou auxiliado por amigos. Ou, ainda, da primeira-dama Nair de Teffé, mulher do ex-presidente Hermes da Fonseca, que arcava com os custos das recepções que organizava no Palácio do Catete, sem onerar os cofres públicos.

O desrespeito ao bem público representa o desrespeito ao Brasil e ao seu povo.

*Advogado

 

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