O Estado de S. Paulo.
Sem ele, a América do Norte não teria a cultura do ‘homem comum’ e não seria o ícone mundial da democracia
Populismo mais recente é o que todos
conhecemos: o latino-americano; sua figura emblemática foi o comandante-general
Juan Domingo Perón.
Como outros do gênero, Perón atingiu
plenamente o objetivo que se propôs realizar: levar a Argentina de volta da
riqueza para a pobreza. O brasileiro Getúlio Vargas deve ter nutrido sonhos
parecidos, mas era muita areia para seu caminhãozinho. Em comparação, os
estragos que causou foram modestos.
O populismo que prolifera cá por nossas
bandas se distingue por dois traços bem nítidos. O primeiro, por óbvio, não
precisa nos ocupar: é a arte de fazer caridade com o chapéu alheio. Para o
populista de boa cepa, o “equilíbrio de contas” equivale a um soco no ouvido.
Ele atinge a perfeição quando resolve realizar sua obra por interposta pessoa,
como Lula fez via Dilma Rousseff, cujo governo arrastou-nos para a pior
recessão de nossa história).
O segundo atributo do populismo latino-americano é sua visceral incompatibilidade com o regime democrático. Ele opera meticulosamente para se identificar emocionalmente com uma parcela substancial dos cidadãos, para transformá-los em seu “povo”, cevando-o para um dia, valendo-se dele, solapar as instituições e assumir o poder em bases autocráticas. Da “polaca” redigida por Francisco Campos e outorgada por Getúlio Vargas na tarde de 10 de novembro de 1937, passando pelas “forças ocultas” de Jânio Quadros e culminando com Brizola ameaçando diretamente o Legislativo (“eu fecho este Congresso. Reforma agrária na lei ou na marra”), a história é bem conhecida, não precisamos praticar o sadismo de a recapitular.
Luiz Inácio Lula da Silva flertou com um
enredo semelhante, mas logo concluiu que a esperteza lhe seria mais útil que
sua escassa coragem. Adotou um figurino distinto. Na parte da manhã, trajando
macacão, exercitava sua oratória na porta das fábricas; à tardinha, de terno e
gravata, conversava com banqueiros sobre eventuais benesses. Atualmente, em seu
terceiro mandato, parece ter entendido que lhe faltava um complemento, um quê
de estadista. Se está tentando se redimir ou apenas se repaginando, só
saberemos mais adiante. O futuro a Deus pertence.
O populismo mais antigo a que me referi é o
dos Estados Unidos. Populismo nos Estados Unidos? Estarei a contar estrelas?
Não, caro leitor, ele existiu, era chamado por esse nome e fez um enorme bem
aos nossos irmãos do Norte. Sem ele, a América do Norte não teria a cultura do
“homem comum” e não seria o ícone mundial da democracia. Se contarmos a partir
da guerra de independência contra a Inglaterra, cujo marco inicial (1774) foi a
tentativa britânica de tributar as colônias (o símbolo dessa ação foi o
“imposto do selo”), estamos falando de um processo político que durou um século
e meio. Em 1776, o Congresso americano decide suprimir a autoridade britânica
nas colônias; o general George Washington força os britânicos a saírem de
Boston; a convenção de Virgínia publica sua Bill of Rights (Declaração de
Direitos) e o Congresso declara a Independência.
Mas não pense o leitor que a essa altura o
martelo já estava batido. Dirigindo-se à assembleia da Carolina, John Adams
sentenciou: “Toda democracia é efêmera”. Ela cedo (se) desperdiça, se deixa
exaurir e se mata. Nunca houve uma democracia que não cometesse suicídio. Se os
senhores entregarem aos democratas uma fração da soberania, ou seja, se lhes
outorgarem o comando ou a preponderância na assembleia, eles logo recorrerão ao
voto para tomar a propriedade dos senhores, e se os senhores conseguirem
escapar vivos, isso será o máximo de humanidade, consideração e generosidade
que alguma democracia triunfante terá permitido desde sua invenção (Richard
Hofstadter, página 12). Tudo isso sem
esquecer que, em 1800, com o país consolidado, havia quem tentasse convencer o
presidente George Washington a governar como um ditador militar.
Está, pois, coberto de razão o historiador Richard Hofstadter quando assevera que a América do Norte que hoje conhecemos não existiria sem a superlativa contribuição da linhagem de líderes, que hoje denominamos populista, cujo início pode ser contado a partir da “democracia jacksoniana”, na quarta década do século 19. Remontando à guerra de Independência e ao próprio Thomas Jefferson, passando por Andrew Jackson, William Jennings Bryan e seu Partido Populista de 1892-1896, a Theodore Wilson e ao senador La Follette, candidato em 1924, todos contrapuseram o “pequeno” ao “grande”, a periferia contra a plutocracia do leste, combateram os juros extorsivos cobrados pelos bancos e exigiram equidade na atuação do Estado. A diferença, já se vê, é que lá os “pequenos” falaram por si mesmos, tomando a iniciativa e exigindo a democratização das instituições e da sociedade. Impuseram a ideologia do pequeno proprietário – do “yeoman farmer” – e aceitaram o agigantamento do Estado promovida por Franklin Delano Roosevelt só quando a crise de 1929 forçou a mudança no sentido do Estado do Bem-Estar Social.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é
membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Getúlio Vargas,figura polêmica.
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