sexta-feira, 10 de março de 2023

César Felício - Reforma tributária sem perdas é inverossímil

Valor Econômico

Discussão objetiva de compensações pode facilitar

Estreou mal a tramitação da reforma tributária no Congresso neste ano. Há um problema de comunicação entre o secretário extraordinário de reforma tributária Bernardo Appy e a Câmara dos Deputados, que pode levar o texto final da reforma para um resultado muito distante do imaginado pelos idealizadores da proposta.

Não é apenas um problema de falta de base do governo no Legislativo, apontada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e reconhecida pelo líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). É também de convencimento. Appy e especialistas no tema argumentam expressamente que a reforma tributária é um jogo de “ganha ganha”. Ninguém perde. Em 15 anos, o PIB aumentará pelo menos 12%, em uma estimativa que o secretário diz ser conservadora. “É daí pra cima”, afirmou Appy na sua última ida à Câmara, anteontem. O ganho seria em todos os setores. O PIB da indústria aumentaria 16,6%, mas o de serviços subiria 10,1%. Na educação privada, alta de 5,2%. Na saúde, de 6,2%.

Não para por aí: um trabalho dos economistas Edson Domingues e Débora Freire, encomendado pelo CciF em 2020 afirma que haverá ganhos para todas as faixas de renda, de 0 até mais de 30 salários mínimos. De acordo com os especialistas, a tributação de itens agora isentos de ICMS, como a cesta básica, seria amplamente compensada pela redução da carga sobre insumos.

Também não há perdas federativas, de acordo com os estudos divulgados, porque a expansão da economia compensaria os efeitos do fim das políticas de atração fiscal ou da mudança da tributação do futuro IVA da origem para o destino. A se acertar apenas casos específicos como o da zona franca de Manaus.

Eis aí uma reforma que mexe com a vida de todo mundo, todos ganham e ninguém perde. Incrível que não tenha sido pensada antes e aprovada nas duas Casas, já que os males do sistema tributário brasileiro são de conhecimento geral e a reforma seja discutida desde o governo Fernando Henrique.

Uma proposta em que simultaneamente todos os contribuintes e todos os governos tenham só ganhos e nenhuma perda não soa convincente, o que não quer dizer necessariamente que seja falso. Não parece real porque contraria o senso comum, expressado nessa quinta-feira em entrevista pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos): em um jogo em que a carga fica no mesmo lugar, se um ganha, o outro perde. Se a indústria deixa de ser sobretaxada, alguém arcará com este alívio. Talvez o caminho do convencimento não passe por sinalizar com a descoberta da pedra filosofal ou do paraíso perdido, mas com a discussão objetiva sobre como estabelecer compensações.

Não se acredita dentro da Câmara que a proposta de reforma tributária não traga perdas, ao menos em um primeiro momento, a determinados segmentos. O ponto mais delicado é o fim da isenção sobre os produtos que integram a cesta básica. Os articuladores da reforma já perceberam que há um problema e surgiu como fórmula de compensação o “cashback”. Trata-se de mecanismo pelo qual o consumidor poderia receber de volta parte do imposto pago em algum item que estava desonerado antes e que passa a ser taxado com o fim de benefícios fiscais.

O avanço da tecnologia permite que se cruze a emissão de notas fiscais com os CPFs listados no cadastro único, o que dá uma dimensão redistributiva ao “cashback”. O contribuinte que recebe Bolsa Família poderia receber posteriormente de volta o IBS pago ao comprar um litro de leite ou um saco de arroz. Um programa criado no Rio Grande do Sul, o “Devolve ICMS”, serve como modelo ao que pode ser esta compensação.

Do ponto de vista prático, a sugestão do “cashback” tem vários problemas, listados pelos integrantes do grupo de trabalho que analisam a reforma. “Só acredito em cashback com desconto automático. Essa coisa de desconto futuro vai fazer que o Brasil seja o único país do mundo em que pobre precisará ter capital de giro”, diz o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE). “O cadastro único está defasado, a devolução que existe no Rio Grande do Sul, modelo apresentado, é muito pequena e o teto de beneficiados é baixo”, acrescentou o pedetista.

Há um agravante: Appy sinalizou em sua fala na Câmara que, quanto mais amplo for o “cashback”, maior seria a alíquota do IVA, como forma de calibrar a carga tributária. E tudo que o Congresso menos quer ouvir é em aumentar a alíquota prevista para além de 25%, já considerada muito alta.

Outro problema foi levantado durante audiência pública pelo deputado Ivan Valente (Psol-SP). Se o “cashback” ficar para ser regulamentado por lei complementar, essa é uma tarefa que pode levar anos. A reoneração viria muito antes de sua compensação.

Se o “cashback” é complexo, a multiplicação do que Appy chamou de “válvulas de escape” é simples, ou seja: por que não um IVA comum a todos os Estados com mais de uma alíquota? Benevides defende duas: uma geral e uma diferenciada para transporte coletivo e de carga, educação e saúde.

Outro integrante do GT, Jonas Donizette (PSB-SP), vê com simpatia uma ideia mais ousada, que circula entre representantes do empresariado do varejo, um IVA quem sabe com cinco alíquotas. Se cinco alíquotas podem, quem estará nelas? É de se imaginar como irá se desenrolar no Congresso o lobby entre os setores para figurarem entre os contemplados com alíquotas diferenciadas. Pode-se colocar em risco a própria essência do IVA, que é a uniformidade do tratado e a simplificação do sistema.

“Do jeito que está sendo colocado, não passa nada”, sintetizou o deputado Adail Filho (Republicanos), um dos três parlamentares do Amazonas que está no colegiado criado por Lira.

Essa é uma armadilha perigosa. Em situações de impasse, o Congresso tende a decidir nada decidir.

 

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