O Globo
Seus burocratas defendem a Viúva
Se e quando a turma que tentou liberar as
joias das Arábias na Receita Federal do aeroporto de Guarulhos for assistir a
“Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo”, os doutores terão um momento de
satisfação quando Evelyn (Michelle Yeoh, que levou o Oscar de Melhor Atriz)
acerta um soco na boca da auditora Deirdre, da Receita americana (Jamie Lee
Curtis, que levou a estatueta de Atriz Coadjuvante).
O filme lida com realidades paralelas numa
comédia. O caso das joias das Arábias lida com realidades paralelas da trágica
vida real dos poderes de Brasília.
O assessor do ministro-almirante achava que poderia passar com as peças pela alfândega de Guarulhos. Não conseguiu. O ministro-almirante achou que, indo ao auditor que havia apreendido as joias, resolveria a questão. Nada feito. Tempos depois, o tenente-coronel do Planalto achou que desembaraçaria as joias e mandou um sargento a Guarulhos. Outro auditor recusou-se a liberar o mimo. O sargento ligou para o tenente-coronel e explicou que sua missão estava encalhada. Ofereceu ao auditor seu telefone para que falasse com o poderoso tenente-coronel, braço direito do então presidente da República. O auditor explicou que não falava ao telefone em situações daquele tipo.
Do almirante ao tenente-coronel, passando
pelo sargento, todos viviam uma realidade, a dos poderosos. Os auditores da
Receita viviam a realidade de uma burocracia rígida. Ela é treinada no exemplo
do secretário da Receita Osíris Lopes Filho, aquele que deixou o cargo em 1994,
depois de peitar os bancos e de ter sido impedido de cobrar os tributos devidos
pelos passageiros do avião que transportou a seleção tetracampeã do mundo. Ou
ainda no exemplo de Lina Maria Vieira, submetida a um processo de fritura
durante o mandarinato do ministro Guido Mantega. Foi dela a seguinte frase:
— O bom contribuinte se sente um otário.
A Receita tem mais de 10 mil auditores
fiscais, todos chegaram por concurso, e todos têm uma carreira de Estado. Num
universo desse tamanho, há de tudo, mas nele vigora a Lei de Serpico. Frank
Serpico era um policial de Nova York que levou um tiro na cara, dado por traficantes
associados a policiais corruptos. Ele denunciou as malfeitorias da polícia da
cidade, e sua lei reza assim:
—É o policial corrupto quem deve temer o
honesto, não o contrário.
Os auditores de Guarulhos travaram as joias
da Arábias porque foram temperados em bons exemplos e não temem, são temidos.
Seguem as normas e raramente falam. Quando falam, às vezes dão sono.
Vale lembrar que meses antes da apreensão
das joias das Arábias um hierarca da Receita visitava o Planalto a bisbilhotar
a vida de inimigos do rei. Em pelo menos duas ocasiões, hierarcas da Receita
foram contactados por poderosos interessados na liberação das joias. Nada
feito. É um efeito da Lei de Serpico.
A realidade paralela dos poderosos costuma
prevalecer. Se não fosse assim, a turma das joias das Arábias jamais teria
tentado atropelar os auditores com suas carteiradas.
Resta à turma das joias o consolo de ver o
filme “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo”.
Não entendo o ''O'' do título do filme.
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