sexta-feira, 3 de março de 2023

Fernando Abrucio* - Desigualdade é monstro de várias faces

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Para enfrentar esse desafio será necessário mudar a visão que parcela relevante e influente da sociedade tem do atual modelo de convivência e desenvolvimento do país

Os principais cientistas sociais e economistas, para não falar de grande parte dos políticos, apontam a desigualdade como o maior problema do país. Não é para menos: o fantasma da desigualdade acompanha cada crise brasileira. Foi assim, embora em formatos diferentes, nos casos recentes da tragédia humanitária dos Yanomami, do desastre no litoral norte de São Paulo e do trabalho escravo em vinícolas do Rio Grande do Sul. Diante dessa onipresença, uma pergunta se impõe: o que explica a força desse monstro de várias faces?

As profundezas da desigualdade residem, primeiramente, na história mais ampla de um país em que a ideia de igualdade não norteou o projeto de construção nacional. Somente recentemente, a partir da Constituição de 1988, a visão de que há direitos iguais para todos começou a se implantar numa escala maior. Mesmo assim, uma parcela influente da sociedade ainda não acredita num modelo civilizatório mais igualitarista e continua seguindo o diagnóstico feito pelo abolicionista Joaquim Nabuco: no Brasil, todo mundo quer ser senhor. E quem não pode ser Cavalcanti, para continuar no universo cultural dos pernambucanos, vira cavalgado.

Herança do modelo escravocrata que perdurou por mais de 300 anos, o Brasil é uma sociedade na qual quem faz parte da elite ou mesmo consegue alguma ascensão social relevante procura manter essa posição por meio da criação de distinções em relação aos mais pobres e às populações mais vulneráveis socialmente. Tais barreiras podem derivar da divisão de renda e/ou propriedade, do acesso à educação, de formas diferenciadas de tratamento dos cidadãos por parte do Estado e da origem social/territorial de cada brasileiro, ou, como ocorre muitas vezes, de uma combinação variada desses marcadores de cidadania - nos casos mais extremos, com todos eles juntos atuando ao mesmo tempo.

Trata-se, então, de um monstro com várias facetas e combinações possíveis. Neste sentido, é um termo que deve geralmente ser conjugado no plural: há desigualdades no Brasil, sendo necessário entender como elas se estabelecem e se conectam em cada situação. A compreensão desse processo é importante não só do ponto de vista acadêmico, para explicar por qual razão somos desse jeito; ela também é essencial para pensar em soluções norteadas por políticas públicas contra as estruturas desiguais.

O caráter caleidoscópico da desigualdade brasileira fica patente nos tristes episódios de desgraça social vivenciados recentemente. No caso da tragédia humanitária dos Yanomami ficou claro, em primeiro lugar, que ser indígena no país ainda é estar numa categoria social inferior. Isso se percebe não só pelas mortes e falta de assistência estatal, como ainda pela maneira como muitos justificam o tratamento desigual dado aos povos originários. Como disse um político local em meio à crise, é mais importante proteger os nossos - leia-se os garimpeiros ilegais - do que os outros.

Na verdade, a ocupação territorial do país é uma história marcada, geralmente, por formas de multiplicação de desigualdade. No caso de Roraima, uma massa populacional mais pobre foi levada ao estado, já na década de 1970, por meio da promessa do “ganho fácil” do garimpo. Cabe frisar que no meio desse negócio tem muita gente do andar de cima ganhando em cima daqueles que fazem o trabalho sujo. São comerciantes de ouro ilegal, políticos locais, donos do transporte aéreo, compradores de pedras preciosas que moram no Sudeste do Brasil, entre os principais. Cria-se, aqui, uma cumplicidade entre quem ganha muito e sabe como se proteger das garras da lei e os que destroem o meio ambiente e matam os indígenas em nome de uma ascensão social quase impossível para quem não tem berço, escolaridade ou redes de amizade adequadas para pular as barreiras que separam os Cavalcantis dos cavalgados.

O desastre ambiental no litoral norte de São Paulo, cujo impacto maior foi na cidade de São Sebastião, é um resumo perfeito de um casamento com ganhos e desgraças divididos de forma completamente desigual. O paraíso do veraneio foi construído com o esforço de muitos trabalhadores vindo de fora do estado. Claro que isso gerou uma oportunidade que não havia em seus lugares de origem, porém, esse processo gerou uma divisão territorial nítida entre quem tem poder e quem tem de rezar para evitar uma catástrofe natural. Ao fim e ao cabo, a lista dos mortos revela um retrato cruel da desigualdade brasileira.

Quando recentemente o prefeito de São Sebastião quis construir casas populares decentes à população mais vulnerável, como reagiu a elite local para evitar a mudança de sua paisagem de férias? Contactou um alto funcionário do governo Bolsonaro - o presidente que defendia as vergonhosas barreiras da desigualdade em nome da liberdade - e assim conseguiu embargar o financiamento federal. Uma dessas lideranças disse que o projeto era problemático porque não contemplava bem a questão do saneamento básico. Ora, quem conhece o litoral norte paulista sabe que os mais ricos não tratam tão bem do esgoto quanto exigem dos mais pobres!

Para coroar essas semanas de histórias ilustrativas da desigualdade brasileira, surgiu o triste episódio do trabalho escravo em terras que fornecem uva às vinícolas gaúchas. De tempos em tempos, são encontrados trabalhadores escravizados em várias partes do território nacional, em carvoarias de Minas Gerais, em fazendas no Pará e em pequenas indústrias têxteis na cidade de São Paulo, recheadas de bolivianos escravizados tal qual os colonizadores fizeram com vários povos nas Américas. O fenômeno é mais recorrente do que se poderia imaginar de um país que acabou formalmente com a escravidão há 135 anos. Eu mesmo, quando trabalhei como jornalista em 1995, encontrei escravização num sítio do Rio de Janeiro onde crianças e adultos predominante negros trabalhavam como se 1888 não tivesse ocorrido.

O pior desse episódio de escravização no Rio Grande do Sul foram as justificativas das empresas. Primeiro, foi dito que eram fazendas terceirizadas que realizavam essa cruel prática. Já ouvimos essa história antes também. Ninguém sabe de onde vem parte da madeira e do ouro no Brasil, para não falar do jeans. Terceirizar não pode reduzir a responsabilidade de quem delega, nem juridicamente, muito menos moralmente. Com essa resposta, parecia, à primeira vista, que estavam fechando os olhos para algo ilegal e imoral, mas não defendiam que as relações trabalhistas fossem guiadas pela barbárie da escravidão.

Só que no momento em que deveriam pedir desculpas, os empresários desse setor resolveram justificar moralmente o crime. Soltaram nota dizendo que essa situação deriva da falta de mão de obra disposta a este tipo de trabalho e, pasmem, que tudo isso tinha a ver com políticas como o Bolsa Família e outras ações assistenciais do Estado. Trocando em miúdos, dar condições dignas aos mais pobres pode torná-los muitos exigentes. Não satisfeito, um vereador local foi mais transparente na defesa de sua visão de mundo: o problema está nos baianos que vêm trabalhar no Rio Grande do Sul e propôs que argentinos fossem contratados. Será que estes vão aceitar serem os escravos da elite brasileira?

Todos estes fenômenos têm raízes históricas profundas, trajetórias de décadas de construção da desigualdade. Isto ocorre também em outros cenários brasileiros, como o da relação entre morro e asfalto, entre patroas e empregadas domésticas, entre veranistas e migrantes vendedores de picolé na praia, todos interligados por distinções de renda, propriedade, região, gênero, escolaridade, cor e acesso privilegiado aos recursos estatais.

Mas esse barril de pólvora, que é o muro que separa drasticamente os cidadãos do país, estava sendo reduzido, em tamanho e espessura, pelas mudanças iniciadas pela Constituição de 1988. Faltava bastante coisa, porém, avanços em prol da igualdade eram nítidos, e talvez por isso começaram a incomodar.

Daí que, por ironias da fortuna, foi eleito em 2018 um presidente que era contra o Bolsa Família, que votara contra a garantia dos direitos das empregadas domésticas, que propôs o genocídio indígena para expandir as atividades piratas da mineração, que adorava fazer piadas racistas e misóginas para mostrar a superioridade de sua condição de homem branco, enfim, que achava as múltiplas desigualdades do país uma parte bela e necessária da civilização brasileira. Foram quatro anos propagando esse modelo bolsonarista. Não será fácil e rápido resolver esse novo e destrutivo legado.

Como combater esse monstro de várias facetas chamado desigualdade? Essa é a grande pergunta que o Brasil deve fazer nos próximos 20 anos se quiser se tornar uma civilização mais humana, justa e igualitária. Para enfrentar esse enorme desafio, será preciso aprimorar e reformar as políticas públicas dos três níveis de governo e articulá-los melhor entre si. Mas também será necessário mudar a visão que parcela relevante e influente da sociedade brasileira tem do atual modelo desigual de convivência e desenvolvimento do país. Sem alterar esses valores, uns mais profundos e outros alimentados recentemente pela barbárie bolsonarista, será muito difícil criar um mundo em que, em vez de senhores e escravos, haja cidadãos com direitos e oportunidades iguais.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

 

Um comentário:

  1. Anônimo3/3/23 22:27

    Excelente análise do colunista! Parabéns ao autor e a este blog que divulgou o seu trabalho.
    Relembrando:
    "foi eleito em 2018 um presidente que era contra o Bolsa Família, que votara contra a garantia dos direitos das empregadas domésticas, que propôs o genocídio indígena para expandir as atividades piratas da mineração, que adorava fazer piadas racistas e misóginas para mostrar a superioridade de sua condição de homem branco."
    Hoje, esta canalha está refugiado nos EUA, rezando pra encontrar seu ídolo Trump.
    Fico curioso sobre o que o filósofo gaúcho Denis Rosenfield poderia nos dizer sobre o tratamento dado por seus conterrâneos aos trabalhadores bahianos encontrados em condição análoga à escravidão na serra gaúcha. Acho que ele vai dizer que os militares não sabiam disto...

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