Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Os doces brincavam com a vontade de ser
adulto e de viver o amanhã; não eram apenas coisas que se comia, mas coisas com
as quais se brincava
Uma página inteira na “Folha de S. Paulo”
revelou nesta semana que a Fábrica de Chocolates Pan,
de São Caetano do Sul (SP), não longe do centenário, entrou com pedido de
falência e fechou. O aroma adocicado do cacau que, por tanto tempo, perfumou
todos os dias o bairro em que se situava já não será mais sentido, como
lamentam seus moradores.
Não são muitas as empresas, como essa, que no Brasil nasceram e ficaram durante tão longo tempo no imaginário popular como marcos da história social e da formação da vida cotidiana entre nós. Os marcos do advento da modernidade num país mal saído da escravidão. Que apenas fingira modernismo na Semana de Arte Moderna de 1922.
A fábrica de chocolates teve seu
protagonismo nesse cenário em decorrência de serem alimentícios e de consumo
cotidiano os seus produtos. Basicamente porque não repetiu os concorrentes das
barras retangulares de chocolate, forma de expressão da racionalidade de
enquadramento própria do industrialismo.
A transformação social rápida, como
aconteceu em todas as partes, acarretava novas necessidades. Uma delas, a
necessidade social de doçura, mas também a necessidade social de inconformismo
em todos os campos da vida, mesmo no modo de comer e no formato que era comido.
A da insurgência contra as formas velhas, mas também contra as novas,
originadas da lógica retilínea da estética industrialista, como a das
retangulares barras de chocolate.
Osvaldo Falchero e Aldo Aliberti,
engenheiros, fundadores da Pan,
lançaram chocolates em forma de peixes, moedas e, também, a dos famosos
cigarros de chocolate. Os doces brincavam com a vontade de ser adulto e de
viver o amanhã. Não eram apenas coisas que se comia, mas coisas com as quais se
brincava. Um diálogo com o imaginário infantil, um precoce reconhecimento da
criança como protagonista de vontade social.
Fundada em 1935, o prestígio de um dos
produtos da Fábrica de Chocolates Pan,
que duraria décadas, o das balas Paulistinha, carregava no nome a memória da
recente Revolução de 1932, derrotada pelo Exército e pelo regime de Vargas. Na
boca de cada um, porém, crianças e adultos, os derrotados derrotavam quem os
vencera, saboreando a continuidade invicta do que não terminara nem terminaria.
Era como se mastigassem e engolissem o adversário, ainda décadas depois daquela
derrota política amarga e inesquecível. Segredos da boca. Memória da saliva.
A Pan não
foi apenas uma fábrica de sabores. Ela propôs às crianças de sua época um
diálogo com o futuro. Isto é, além do banal e do diário. Em 1937, os dois
engenheiros italianos anunciaram num jornal que no dia seguinte um foguete
seria disparado de São Paulo. Uma multidão foi ao Campo de Marte supondo que
ele partiria de lá. Não houve foguete nenhum. Era o lançamento de um símbolo,
derivado da sigla Pan.
O foguete ganhou o espaço.
De certo modo, são fatos das exterioridades
significativas, que dão sentido ao modo como se definiu e permaneceu na memória
social a indústria não só como lugar de produção de coisas. Neste caso não só
como fábrica de balas e de chocolate. Mas como fábrica de significações, de
relacionamentos sociais, de sentimentos e concepções mediados pela indústria e
pelo produto industrial, como conexões de um modo de pertencer à sociedade e de
nela permanecer.
A fábrica de chocolates deu forma, cor e
sabor aos afetos da realidade social nascente, tornou-a portátil, de bolso.
Trouxe a infância para a cultura da indústria, revestiu-a de estilo como
expressão de uma sociedade estruturada pela produção industrial.
Essa foi uma face saborosa mas oculta de
uma versão pouco considerada do modernismo paulista. O modernismo não nasceu da
barulhenta declaração de ruptura no modo de ver o mundo, de expressá-lo, de
deformá-lo para compreendê-lo da semana de fevereiro de 1922 no Theatro Municipal
de São Paulo. Nem a ele se limitou. Nasceu da trama crítica da indústria e da
industrialização. Muitos modernistas foram antes operários.
Falchero e Aliberti sugeriram e situaram o
chocolate e as balas da Pan no
cenário do modernismo. Enfrentaram os concorrentes com a crítica imaginária,
doce, às formas compulsórias da lógica industrial na alimentação. Situaram o
modernismo comestível no futuro. Ocuparam o presente indeciso com a doçura da
espera e da certeza. O lá diante como possibilidade do agora.
Fizeram de chocolates e balas instrumentos
antimodernistas de uma pós-modernidade precipitada, um romantismo que adoça até
hoje a memória de várias gerações. O fechamento da fábrica de chocolates
encerra uma época da mentalidade popular e de nossa história social, a do nosso
romantismo fabril. Começa uma época sem doçura imaginária.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A
Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
O que diria o clássico José de Souza Martins sobre chocolates Sönksen, Drops Dulcora, Biscoito ou Bolacha Aymoré - principalmente o biscoito 'Serenata'?
ResponderExcluirEski-Bon teve seu lugar
ResponderExcluirAdoro chocolate.
ResponderExcluirBelo texto.
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