O Estado de S. Paulo
O episódio desta semana pode servir para
esquentar o outro debate que vem por aí e que terá consequências decisivas no
futuro da economia
Ao completar o segundo mês de existência, o
governo Lula viveu um dilema: taxar de novo a gasolina ou abrir mão de R$ 28
bilhões em impostos.
Alguns setores da imprensa apresentaram a encruzilhada como se fosse um espaço onde lutavam a ala política e a econômica. Fiquei surpreendido com o tratamento. Será que me comportei como um tecnocrata quando, lá atrás, critiquei a decisão de Bolsonaro de isentar o combustível de impostos federais? Parecia para mim um absurdo fazer com que os pobres financiassem os ricos, os pedestres pagassem pela gasolina dos motoristas. Além disso, havia o argumento ecológico, o estímulo ao uso de combustíveis fósseis e, consequentemente, um calorzinho a mais no aquecimento global.
O novo governo assumiu com dois
compromissos claros: favorecer os mais pobres e contribuir no combate ao aquecimento
global. Apesar de entender os argumentos da chamada ala política, seria difícil
para ela defender a dupla incoerência ao manter a desoneração do combustível.
Mas existe um outro fator que costumava
balizar as decisões políticas. A análise da conjuntura, mesmo que não seja
perfeita, era um instrumento de importância. Estes dois primeiros meses de
governo foram cheios de surpresas – a maioria delas muito onerosa. Para
começar, houve o quebra-quebra de 8 de janeiro. Foi preciso reconstruir as
áreas atingidas e os prejuízos não se limitam a isso: prisões subitamente
cheias, criação de força-tarefa para colher depoimentos e todo o esforço
político para reforçar a democracia. É possível que parte desse dinheiro volte
aos cofres públicos. Mas depende da justiça e leva bastante tempo.
Logo em seguida, veio a tragédia Yanomami.
Foi necessária uma grande mobilização para evitar o extermínio de uma das mais
importantes etnias amazônicas. Isso também representa custos em deslocamento,
diárias, gasolina de aviação, hospitais de campanha, deslocamento de tropas.
As surpresas não pararam aí. Caiu o
temporal no litoral norte de São Paulo. De novo, era preciso mobilizar no
mínimo R$ 10 milhões para os custos de emergência, sem contar os gastos futuros
e também o esforço de deslocar o maior navio da Marinha, com um hospital a
bordo e grande tripulação.
No momento mesmo em que se vivia a tragédia
no litoral de São Paulo, uma comissão oficial se deslocava para o Sul do
País, onde uma seca impiedosa atinge a
maioria dos municípios do Rio Grande. Só neste caso foi preciso mobilizar R$
430 milhões para a assistência emergencial.
É possível dizer que esse pequeno
inventário é uma visão estreita dos gastos, que existem outras grandes
despesas, como as com os juros ou mesmo as emendas parlamentares, que realmente
fazem a diferença. Mas a verdade é que essa sucessão de problemas – muitos
deixados por Bolsonaro – não permitiu que o governo avançasse no ritmo
desejado.
A política externa foi exceção. Lula foi ao
Cairo falar sobre meio ambiente, visitou a Argentina e o Uruguai, encontrou-se
com Biden nos EUA, vai à China em março e possivelmente visite a África. Não há
nenhum presidente no mundo viajando com essa frequência. Mas isso pode ser
atribuído ao isolamento em que Bolsonaro lançou o País.
Mas todas as viagens, além do discurso
político, se esforçam também para atrair em investimentos, melhorar as relações
comerciais – enfim, são um esforço para abrir um novo ciclo econômico.
Dentro desse contexto, abrir mão de R$ 28
bilhões nos impostos parece ser um luxo que esnoba a própria conjuntura
difícil, pois grande parte das despesas iniciais do governo não estava no radar
da equipe de transição, era imprevista.
A reflexão que extraio deste episódio do
combustível é a de que o debate ficou um pouco mais pobre. Na verdade, o que
estava em jogo eram duas visões políticas que poderiam ser desenvolvidas à
exaustão, mas nunca reduzidas a um choque entre guardiões da popularidade e
tecnocratas apegados exclusivamente ao equilíbrio fiscal.
A maneira como se arrecada e se gasta o
dinheiro a partir de um programa consagrado nas urnas é, na verdade, um tema
político. Bolsonaro fez demagogia com o preço da gasolina e, no entanto, não se
elegeu. Mesmo se analisarmos em termos puramente econômicos, o preço da
gasolina não é um fator decisivo no crescimento de um país. Se fosse assim, a
Venezuela, que tem o menor preço do mundo, seria uma potência mundial e Hong
Kong, que tem o maior preço do mundo, estaria em grandes dificuldades.
Dizem alguns economistas que o grande
trunfo do novo governo será a reforma tributária, que pode ter um peso
estimulante na economia, como foi o Plano Real. O fato de distinguir
combustíveis fósseis de biocombustíveis na tabela de taxação mostra que o governo
ao menos se abre para um ângulo decisivo na reforma que virá. Ela não será
apenas moderna por combater desigualdades e suprimir gastos inúteis, mas também
por aceitar a realidade ambiental num planeta em crise.
O episódio desta semana pode ao menos servir
para esquentar o outro debate que vem por aí e, certamente, terá consequências
decisivas no futuro da economia. Que seja o mais amplo e acessível à sociedade
e nos ajude a crescer, algo que não fazemos, de verdade, há muitos anos.
Verdade.
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