O Globo
É difícil explicar por que o Brasil não tem
um transporte público confortável, eficaz e pontual. Faltam recursos? Não creio
O governo federal voltou
a cobrar imposto sobre a gasolina. Houve muita discussão, escrevi artigo,
fiz inúmeros comentários. Parecia incoerente que um governo voltado para os
pobres favorecesse motoristas, e não pedestres; não combatesse mudanças
climáticas e estimulasse o uso de combustível fóssil; e finalmente
abrisse mão de R$ 29 bilhões na pindaíba em que se encontram as contas
públicas?
Mas toda essa discussão me pareceu um pouco limitada, difícil torná-la atraente para um público maior. Pensei então no filme “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”. Sua técnica de unificar muitos universos talvez fosse de utilidade para transformar os 47 centavos em algo mais amplo.
Um dos mundos que deveriam ser chamados ao
centro da cena é o transporte público. É difícil explicar por que o Brasil não
tem um transporte público confortável, eficaz e pontual. Faltam recursos? Não
creio. A única pista que explica essa lacuna é a proximidade das empresas com
os políticos.
O universo da indústria automobilística
também padece dessa proximidade com os políticos, dessa força estranha que a
mantém numa zona de conforto, mas, paradoxalmente, em declínio.
Leio que o Brasil é rico em lítio e produz
o mineral em grande escala no paupérrimo Vale do Jequitinhonha. Se as reservas
são tão grandes, aquilo ali pode ser tão promissor quanto o pré-sal —
lembram-se dessa entidade mística que resolveria todos os problemas do país?
Pelo menos o lítio favoreceria a produção
dos carros elétricos no Brasil e, em último caso, como é um mineral versátil,
poderia ajudar no controle da doença bipolar e de outros problemas mentais.
Por falar em carro: faz 15 anos que não
temos carro em casa. Usamos bicicletas para o transporte diário e táxi quando é
preciso ir mais longe. Não sou ingênuo a ponto de ver nisso uma solução ampla.
Um homem que passou por aqui para colher material para exame de laboratório tem
uma condição diferente. Acorda às 4h na Baixada Fluminense, trabalha de casa em
casa até meio-dia e, depois do almoço, usa o carro como motorista de Uber.
Para muitas pessoas, o carro ainda é um
instrumento de trabalho indispensável. Mas a verdade é que, em certos setores,
sobretudo na nova geração, ele não tem mais o glamour do passado.
Nos anúncios de TV, o carro novo era sempre
uma sugestão de encontro amoroso, uma espécie de ponte para lindas mulheres.
Hoje, o apelo maior é para a aventura. Mesmo nesse campo, observa-se um
crescimento grande de empresas de aluguel. É mais prático alugar de vez em
quando do que ter um carro em casa.
Há muitos anos, em alguns países europeus,
começou a prática de carros compartilhados. Um mesmo carro serve a diferentes
donos, de acordo com uma agenda elaborada a cada mês.
São muitas as linhas de abordagem, mas
discutimos o aumento de gasolina com a mesma tranquilidade com que tratamos um
fenômeno natural, como se fôssemos a cada novo ano despejar novos fumegantes
carros e caminhões nas ruas do Brasil, e isso pudesse continuar por décadas.
Alguma coisa vai nos parar: o aquecimento global, o engarrafamento, as doenças
respiratórias.
Um universo que ainda cabe neste curto
texto é o planejamento urbano. Não se pode mais trabalhar, fazer compras e
morar em lugares diferentes. Os grandes prédios de escritórios vazios nos
centros das cidades deveriam nos inspirar. A pandemia pelo menos mudou alguma
coisa. O mínimo que podemos fazer é aprender com ela.
Compreendo a importância imediata da
discussão sobre o aumento da gasolina. As pessoas querem saber que efeito as
medidas terão no bolso. Mas, sempre que pudermos, será necessário discutir que
repercussão tudo isso terá no futuro. O ritmo de debate no Brasil é um ritmo
punk: para ele, não há amanhã.
Fernando Gabeira sabe das coisas.
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