sexta-feira, 24 de março de 2023

Flávia Oliveira - Ação contra o crime

O Globo

Ao menos três episódios dantescos deste março sugerem que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu terceiro mandato, terá de assumir as rédeas do enfrentamento ao crime organizado no país. Precisará deixar de lado a justificada indignação pessoal e também as décadas de administrações federais, governos petistas incluídos, hesitantes em pôr as mãos num caldeirão que só faz ferver. E incomoda crescentemente a população brasileira, das metrópoles aos balneários turísticos, de cidades médias aos grotões.

No Rio Grande do Norte, o caos instituído há duas semanas por facções do tráfico de drogas em ataques ao sistema de transporte, prédios públicos e estabelecimentos privados já alcançou cinco dezenas de municípios, a começar pela capital, Natal. Flávio Dino, governador do Maranhão por dois mandatos, hoje à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, enviou agentes da Força Nacional e da Polícia Penal, prometeu R$ 100 milhões e equipamentos à governadora Fátima Bezerra, visitou o estado. Ainda assim, o afrontamento de grupos rivais unidos, pelo que se sabe, contra maus-tratos em presídios locais, segue ativo, sob a liderança de chefes encarcerados dentro e fora do território potiguar.

Tornou-se pública anteontem a bem-sucedida investigação da Polícia Federal que desarticulou um plano para sequestrar e assassinar autoridades. Sob ameaça, estavam o ex-juiz e ex-ministro da Justiça, hoje senador, Sergio Moro e o promotor do Gaeco/MP-SP Lincoln Gakiya, que há 18 anos toureia a facção nascida em penitenciárias paulistas depois do Massacre do Carandiru que se tornou a maior do Brasil. Com domínio de cadeias, varejo nacional e rotas internacionais, a quadrilha tem ramificações em todas as unidades da Federação e domina sozinha São Paulo, Mato Grosso do Sul e Piauí.

Num relatório estarrecedor divulgado às vésperas da eleição de 2022, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apresentou o resultado da apuração dos jornalistas Luís Adorno e Tiago Muniz nas cinco regiões do país sobre facções do tráfico de drogas. Identificaram 53 grupos armados, de Norte a Sul. Todas têm “ligação intrínseca” com presídios:

—As facções dominam prisões e fazem a gestão dos presos. Até quem não quer ser vinculado acaba se faccionando. O Estado não controla o sistema prisional e ainda mantém em condições degradantes os privados de liberdade. É esse o nó — afirma Samira Bueno, diretora executiva do FBSP.

Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e autor de livro sobre a história da facção paulista, ratifica:

— O crime no Brasil é prisional. É no cárcere que as gangues se organizam e recrutam seus membros. Não há como avançar no enfrentamento ao crime organizado sem parceria entre governo federal e estados. A atuação da PF, com MPF, MP-SP e polícia paulista, foi exitosa por isso. Está claro que a União não pode fugir do papel de coordenação.

Ontem, uma operação policial característica do governo fluminense, do reeleito Cláudio Castro, deixou 13 mortos no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. Foi a mesma comunidade onde uma ação mal explicada da Polícia Civil e da PF levou à morte o menino João Pedro, aos 14 anos, em maio de 2020. Foi esse o crime que pavimentou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender intervenções em favelas durante a pandemia, nunca integralmente cumprida. Pendentes também estão o plano de redução de homicídios com participação da sociedade civil e a instalação de câmeras em viaturas e fardas de agentes da lei, também determinados pelo STF.

A ação de ontem no Salgueiro deixou morto Leonardo Costa Araújo, chefe do tráfico em Belém. É apontado como um dos responsáveis por uma série de ataques que vitimaram 40 agentes de segurança pública no Pará. Estava foragido desde 2019. Os ataques no Rio Grande do Norte resultaram na morte de um líder de uma facção na Paraíba e na remoção de outro que estava detido na Bahia. É mais uma evidência do intercâmbio do crime organizado pelas unidades da Federação.

O crime arquitetado pela facção de São Paulo contra autoridades não era inédito, embora alcance outro patamar ao mirar um senador da República e sua mulher, Rosângela Moro, deputada federal. Em 2003, houve o assassinato do juiz José Machado Dias, de Presidente Prudente. Em 2006, o caos nunca esquecido dos ataques em São Paulo. Seis anos atrás, três agentes penitenciários foram mortos, entre eles uma policial mãe de um bebê de 10 meses. O promotor Gakiya é ameaçado há década, e o ex-ministro da Justiça estaria no radar da maior e mais rica organização criminosa desde 2019, quando patrocinou a remoção de líderes para presídios federais, de rotina muito mais rígida.

Todos os caminhos começam, terminam e recomeçam no sistema carcerário. Autoridades federais e estaduais, Judiciário, sociedade precisam se debruçar sobre o tema. E elaborar enfrentamento que passe por investigação profunda e coordenada contra as facções, incluindo o caminho do dinheiro, conexões com o poder público e um sistema prisional que ressocialize, em vez de empurrar detentos para o crime.

 

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