O Globo
Ao menos três episódios dantescos deste
março sugerem que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu terceiro
mandato, terá de assumir as rédeas do enfrentamento ao crime organizado no
país. Precisará deixar de lado a justificada indignação pessoal e também as
décadas de administrações federais, governos petistas incluídos, hesitantes em
pôr as mãos num caldeirão que só faz ferver. E incomoda crescentemente a
população brasileira, das metrópoles aos balneários turísticos, de cidades
médias aos grotões.
No Rio Grande do Norte, o caos instituído há duas semanas por facções do tráfico de drogas em ataques ao sistema de transporte, prédios públicos e estabelecimentos privados já alcançou cinco dezenas de municípios, a começar pela capital, Natal. Flávio Dino, governador do Maranhão por dois mandatos, hoje à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, enviou agentes da Força Nacional e da Polícia Penal, prometeu R$ 100 milhões e equipamentos à governadora Fátima Bezerra, visitou o estado. Ainda assim, o afrontamento de grupos rivais unidos, pelo que se sabe, contra maus-tratos em presídios locais, segue ativo, sob a liderança de chefes encarcerados dentro e fora do território potiguar.
Tornou-se pública anteontem a bem-sucedida
investigação da Polícia Federal que desarticulou um plano para sequestrar e
assassinar autoridades. Sob ameaça, estavam o ex-juiz e ex-ministro da Justiça,
hoje senador, Sergio Moro e o promotor do Gaeco/MP-SP Lincoln Gakiya, que há 18
anos toureia a facção nascida em penitenciárias paulistas depois do Massacre do
Carandiru que se tornou a maior do Brasil. Com domínio de cadeias, varejo
nacional e rotas internacionais, a quadrilha tem ramificações em todas as
unidades da Federação e domina sozinha São Paulo, Mato Grosso do Sul e Piauí.
Num relatório estarrecedor divulgado às
vésperas da eleição de 2022, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)
apresentou o resultado da apuração dos jornalistas Luís Adorno e Tiago Muniz
nas cinco regiões do país sobre facções do tráfico de drogas. Identificaram 53
grupos armados, de Norte a Sul. Todas têm “ligação intrínseca” com presídios:
—As facções dominam prisões e fazem a
gestão dos presos. Até quem não quer ser vinculado acaba se faccionando. O
Estado não controla o sistema prisional e ainda mantém em condições degradantes
os privados de liberdade. É esse o nó — afirma Samira Bueno, diretora executiva
do FBSP.
Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de
Estudos da Violência da USP e autor de livro sobre a história da facção
paulista, ratifica:
— O crime no Brasil é prisional. É no
cárcere que as gangues se organizam e recrutam seus membros. Não há como
avançar no enfrentamento ao crime organizado sem parceria entre governo federal
e estados. A atuação da PF, com MPF, MP-SP e polícia paulista, foi exitosa por
isso. Está claro que a União não pode fugir do papel de coordenação.
Ontem, uma operação policial característica
do governo fluminense, do reeleito Cláudio Castro, deixou 13 mortos no Complexo
do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. Foi a mesma
comunidade onde uma ação mal explicada da Polícia Civil e da PF levou à morte o
menino João Pedro, aos 14 anos, em maio de 2020. Foi esse o crime que
pavimentou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender
intervenções em favelas durante a pandemia, nunca integralmente cumprida.
Pendentes também estão o plano de redução de homicídios com participação da
sociedade civil e a instalação de câmeras em viaturas e fardas de agentes da
lei, também determinados pelo STF.
A ação de ontem no Salgueiro deixou morto Leonardo
Costa Araújo, chefe do tráfico em Belém. É apontado como um dos responsáveis
por uma série de ataques que vitimaram 40 agentes de segurança pública no Pará.
Estava foragido desde 2019. Os ataques no Rio Grande do Norte resultaram na
morte de um líder de uma facção na Paraíba e na remoção de outro que estava
detido na Bahia. É mais uma evidência do intercâmbio do crime organizado pelas
unidades da Federação.
O crime arquitetado pela facção de São
Paulo contra autoridades não era inédito, embora alcance outro patamar ao mirar
um senador da República e sua mulher, Rosângela Moro, deputada federal. Em
2003, houve o assassinato do juiz José Machado Dias, de Presidente Prudente. Em
2006, o caos nunca esquecido dos ataques em São Paulo. Seis anos atrás, três
agentes penitenciários foram mortos, entre eles uma policial mãe de um bebê de
10 meses. O promotor Gakiya é ameaçado há década, e o ex-ministro da Justiça
estaria no radar da maior e mais rica organização criminosa desde 2019, quando
patrocinou a remoção de líderes para presídios federais, de rotina muito mais
rígida.
Todos os caminhos começam, terminam e
recomeçam no sistema carcerário. Autoridades federais e estaduais, Judiciário,
sociedade precisam se debruçar sobre o tema. E elaborar enfrentamento que passe
por investigação profunda e coordenada contra as facções, incluindo o caminho
do dinheiro, conexões com o poder público e um sistema prisional que
ressocialize, em vez de empurrar detentos para o crime.
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