O Globo
Não é surpresa o país que naturaliza o extermínio de jovens ridicularizar o envelhecimento dos adultos. No Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2022, a taxa de homicídio na faixa etária de 20 a 29 anos (55,6 por 100 mil habitantes) é mais que o dobro da média nacional (23,2). Uma sociedade que não preza a vida em amadurecimento é incapaz de celebrar a longevidade. Desde 1991, a esperança de vida no Brasil aumentou dez anos; saiu de 67 para 77 anos. Um brasileiro que chegou aos 40 anos em 2021 tinha perspectiva de viver mais quatro décadas, informou o IBGE na última divulgação da Tábua de Mortalidade, mesmo com o excesso de mortes decorrentes da pandemia de Covid-19. Em vez de bênção, constrangimento. Nesta semana, o debate sobre etarismo emergiu da cena em que três estudantes de biomedicina de 20 e poucos anos debochavam da colega de 45, Patrícia Linares. Trataram-na como se chegar ao ensino superior na maturidade fosse demérito, não fé no futuro, promessa de vida.
Anos atrás, neste mesmo espaço enderecei
aos mais novos um texto sobre o valor da longevidade. “Envelheçam”, implorei.
Escrevi quando Dona Ivone Lara partiu, aos 96, cerca de um mês depois de a vida
de Marielle
Franco ter sido abreviada, aos 38, num crime até hoje não
solucionado. Faz meia década. (Interrompo para acolher a reflexão proposta pela
Anistia Internacional Brasil na cobrança por justiça. “Cinco anos é tempo
demais” sem saber quem mandou matar a vereadora no exercício do mandato e o
motorista que a conduzia, Anderson Gomes. E por quê?)
A dama do samba ensinou que nunca é tarde
para começar. Formou-se em enfermagem e serviço social, casou, criou dois
filhos, ficou viúva, se aposentou. Só depois de tudo isso, no fim dos anos
1970, passou a se dedicar exclusivamente à música. A carreira artística foi tão
longe que haveria tempo de se aposentar uma segunda vez. Clementina de Jesus
foi outra artista brasileira de início tardio. Tinha 60 anos quando se lançou
cantora pelas mãos de Hermínio Bello de Carvalho. Elza Soares trabalhou até a
véspera de morrer, também nonagenária. A imortal Fernanda
Montenegro, 93, fará na semana que vem na Academia Brasileira de
Letras leitura de textos de Simone de Beauvoir extraídos de “A cerimônia do
adeus”.
Perdemos horas preciosas de existência
repetindo que há vida depois dos 40, quando podíamos nos ocupar de melhorá-la.
A longevidade é ativo cobiçado, porque viabiliza a convivência entre gerações e
a riqueza que ela proporciona. Mães e filhos, avós e netos, bisavós e bisnetos,
o que pareceu impossível tornou-se palpável. No domingo passado, na abertura
das comemorações dos 15 anos da Feira das Yabás, evento gastronômico-musical
criado por Marquinhos de Oswaldo Cruz no bairro que leva como sobrenome, debati
com a professora e intelectual negra Helena Theodoro, 80 anos em junho próximo,
a herança ancestral do povo preto e suburbano. Que privilégio ouvir — e guardar
— conhecimento, histórias, memórias, saberes, segredos das mais velhas, dos
mais velhos.
O Brasil tem 15,9 milhões de mulheres e
14,3 milhões de homens com 60 anos ou mais, informa a demógrafa Ana Amélia
Camarano, coordenadora de Estudos e Pesquisas de Igualdade de Gênero, Raça e
Gerações do Ipea. É gente que demanda valorização e carece de cuidados. Não faz
muito tempo, o Brasil aprovou uma reforma da Previdência que elevou a idade
mínima de aposentadoria para 62 anos entre as mulheres e 65 entre os homens.
Brasileiras e brasileiros estão obrigados a trabalhar mais — e contribuir mais
— num mercado que descarta currículos de quem passou de 50 anos.
Filhas, sobrinhas, netas ampliam a carga de
afazeres domésticos e/ou trabalho fora de casa para dar conta de familiares que
envelheceram com pouca saúde e ainda menos dinheiro. Faltam políticas públicas
de acolhimento, lazer e atividades que motivem os idosos. A inatividade, não
raro, entedia e deprime. Não por acaso, chamou a atenção a quantidade de homens
e mulheres acima dos 60 nos acampamentos bolsonaristas do pós-eleição 2022 — e
mesmo entre os presos pelo golpe de Estado tentado em janeiro passado. O
sociólogo Rudá Ricci escreveu sobre o assunto numa rede social:
— Tempos atrás, ouvi de um grupo de
terceira idade que não querem pegar ônibus para fazer sempre o mesmo programa
no Circuito das Águas. Muitos reclamam que são tratados com atividades
padronizadas, repetitivas, sem emoção alguma. [Erich] Fromm [em “Anatomia da
destrutividade humana”] sustenta que essas pessoas aguardam uma aventura que dê
sentido às suas vidas. Emoção.
Isso não virá de uma sociedade em que a
expectativa de vida diminuiu pela morte violenta dos jovens e em que
universitárias sentenciam uma mulher de 40 e poucos ao desconhecimento
perpétuo. Vida, de qualquer idade, é para ser valorizada, celebrada,
aproveitada.
Alguém já disse que a pior coisa da velhice é o conceito que todos temos do que seja velhice. Velhice na atual fase do capitalismo (Industria da Doença) é ficar doente e morrer.
ResponderExcluir