sexta-feira, 17 de março de 2023

Rogério F. Werneck - O jogo do arcabouço fiscal

O Globo

No que tange à questão fiscal, os discursos de Fernando Haddad e do presidente da República estão gritantemente desalinhados

Não falta hoje quem se esforce para acreditar que o anúncio da tão aguardada proposta de um novo arcabouço fiscal dará, afinal, credibilidade ao suposto compromisso do novo governo com a gestão responsável das contas públicas, abrirá amplo espaço para a queda da taxa básica de juros e trará perspectivas bem mais promissoras para a economia nos próximos anos.

O ministro da Fazenda tem feito o possível para reforçar a esperança de que a deflagração desse círculo virtuoso está prestes a ocorrer. Em boa hora, decidiu antecipar a concepção do novo arcabouço fiscal. E, com o devido cuidado, preocupou-se com formar consenso entre ministros da área econômica em torno da proposta para, afinal, conseguir que seja respaldada pelo Planalto e submetida ao Congresso.

O que ainda parece pouco convincente nesse cenário otimista é que, no que tange à questão fiscal, os discursos de Fernando Haddad e do presidente da República estão gritantemente desalinhados. Não há nada, por enquanto, que permita considerar plausível a ideia de que Lula esteja disposto a se impor regras de controle fiscal que venham a tolher de forma relevante a expansão de dispêndio público que seu governo vem contemplando.

Basta ver o que o presidente vem reiteradamente declarando. “Não dá para a gente ficar achando que o gostoso neste país é guardar dinheiro. Não, dinheiro bom é dinheiro transformado em obra, melhoria de qualidade de vida do povo, saúde, educação. Sobretudo emprego, que é o que dá dignidade ao povo brasileiro”.

Trata-se de declaração feita na semana passada, em reunião com 11 ministros, para discutir obras de infraestrutura e o novo Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), ocasião em que o presidente se permitiu deixar ainda mais clara sua visão peculiar sobre restrição fiscal. “Por isso que o Haddad é ministro da Fazenda, ele é criativo. Se a gente não tiver dinheiro, a gente vai atrás dele, e ele vai ter que arrumar. Ele e a Simone (Tebet) vão sentar na mesa e arrumar o dinheiro que nós precisamos para fazer investimento nesse país.” (Folha, 11/3)

Nada disso impedirá o governo de submeter uma proposta de novo arcabouço fiscal ao Congresso, exigência prevista na PEC do Estouro, aprovada no apagar das luzes do ano passado. Mas é difícil que o grau de “criatividade” que será exigido pelo Planalto, no detalhamento de tal arcabouço, ainda permita que se anuncie um conjunto de restrições fiscais efetivas que possa dar credibilidade ao suposto compromisso do governo com uma gestão responsável das contas públicas.

Na entrevista em que concedeu à BandNews no início do mês (2/3), o presidente reagiu com indisfarçável irritação a uma pergunta que insinuava que, na disputa em torno da restauração da tributação federal sobre combustíveis, teria havido vitória da ala econômica sobre a ala política do governo. Lula fez questão de enfatizar que tal interpretação não fazia sentido porque “no meu governo, todas as decisões passam por mim”.

Na discussão sobre a concepção do novo arcabouço fiscal, o enfoque mais promissor é ter em mente que Lula atuará como líder inconteste da ala política do governo. Nada será feito sem que ele esteja de pleno acordo. E não é de hoje que o presidente vem dando evidências inequívocas de que tem plena convicção de que regras de contenção fiscal, como teto de gastos e arranjos assemelhados, constituem estorvos totalmente desnecessários. Não há sinais de que tenha mudado de opinião.

Por outro lado, Lula bem sabe que a aprovação do novo arcabouço fiscal é o que lhe permitirá se livrar de vez do teto de gastos. Terá de procurar manter as aparências e encontrar a medida certa de afrouxamento das novas restrições fiscais, evitando a inconsequência escancarada que possa deflagrar reações desestabilizadoras e complicar a aprovação da proposta de novo arcabouço no Congresso, onde o governo anda pisando em ovos.

Goste-se ou não, esse é o jogo medíocre e arriscado que está prestes a ser jogado pelo Planalto. Triste país.

 

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