sexta-feira, 10 de março de 2023

José de Souza Martins* - Escravidão na colheita de uva

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Empresas envolvidas tiveram que vir a público para pedir perdão. Há um tom patético nesses pedidos

A extensa, inesperada e crescente repercussão do emprego de trabalho escravo na colheita de uva na região vinicultora do Rio Grande do Sul revela aspectos antropológicos do trabalho, dos produtos com ele feito e do poder social e político do consumidor desses produtos.

As empresas não são donas de tudo aquilo que julgam que seus produtos são. Quando muito, são donas do lucro que com eles conseguem, se o conseguem, o que nem sempre acontece.

O mundo da indústria e da produção é um mundo científica e tecnologicamente complexo, qualquer empresário sabe disso. Só que, geralmente, não sabe que é muito mais complexo do que parece: porque o é social e culturalmente. Os significados da produção e dos produtos ficam fora do controle de empresários, de economistas, de advogados, de engenheiros, de publicitários.

A produção na indústria e na agricultura é cercada por um rico imaginário popular que não entra na linha de produção nem é manipulável. O imaginário é socialmente insurgente. É inútil guerreá-lo, chamar a polícia, implantar ditadura, invocar o neoliberalismo.

Três grandes, conhecidas e tradicionais viticultoras, envolvidas no episódio, empregam empresas terceirizadas para recrutar no interior da Bahia trabalhadores utilizados na colheita da uva, caso das vítimas deste episódio.

A terceirização vem se difundindo entre nós desde, pelo menos, os anos 1970. Desde então não é raro que empreendimentos do ramo se envolvam em ações ilegais no recrutamento de trabalhadores para grandes empresas, incrementando sua lucratividade por meio da violação dos direitos trabalhistas no emprego do chamado trabalho escravo. O que acarreta crimes conexos na previdência social, na questão ambiental e outros mais.

Mesmo quando a empresa contratante não sabe o que as terceirizadas estão fazendo em seu nome, não é na conta delas e sim na conta de quem as contrata que incidem as implicações do imaginário popular sobre as irregularidades que cometem.

É o que está acontecendo nesse caso de agora. Um pedido de socorro dos trabalhadores escravizados chegou à Polícia Rodoviária Federal. Os trabalhadores foram localizados, a situação anômala e ilegal constatada e foram libertados. Dos 209 identificados, quase 200 eram baianos e foram levados de volta ao interior da Bahia. Multas e indenizações terão que ser pagas. O pão-durismo lucrativo foi inútil.

O principal e inesperado débito está se configurando na reação dos consumidores. Supermercados estão cancelando as compras dos produtos das empresas acusadas. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil enviou um informe a bispos e padres alertando-os que há uma variedade conhecida de produtoras de vinho de missa onde podem adquirir o vinho usado na celebração eucarística. E que não adquiram vinho estigmatizado pelo trabalho escravo.

A escravidão e a injustiça social nas empresas que, com elas, incrementam os lucros maculam marca e produto. Consumidores têm valores e ética. Empresas envolvidas tiveram que vir a público para pedir perdão pelo acontecido. Há um tom patético nesses pedidos, expressão da consciência da gravidade do fato e da extensão do dano aos negócios.

Para agravar a situação, uma entidade de empresários de Bento Gonçalves defende as empresas acusando os trabalhadores e a política social do Bolsa Família, que neles estimularia o desinteresse pelo trabalho. Na verdade, ela fortalece a resistência do trabalhador aos salários aquém do necessário à sobrevivência de sua família. O Bolsa Família não resolve o problema do desemprego e dos salários ruins. Mas de algum modo constitui um apoio à dignidade do trabalhador em defesa do salário justo.

A consequência mais grave foi o pronunciamento arrogante de um vereador de Caxias do Sul que, da tribuna da Câmara, fez contundente e preconceituoso discurso contra as vítimas. Questionou-lhes a queixa contra as más condições de alojamento e contra a violência dos feitores das terceirizadas. Essa fala foi a gota d’água de um conjunto de humilhações impostas aos trabalhadores. Um discurso de conteúdo bolsonarista e neoliberal, doutrinário e não expressão de um surto.

Poucos dias depois, o vereador, em prantos, estava de volta para pedir perdão aos baianos e aos trabalhadores agredidos. Sua família fora alcançada pelas reações de indignação em defesa dos direitos sociais do trabalho e contra sua fala racista e xenófoba.

O problema não é só brasileiro. No mundo havia, em 2022, 50 milhões de pessoas sob trabalho forçado. A escravidão movimenta negócios milionários: em 2013, segundo apuração da OIT, US$ 150 bilhões. Com o crescimento das ocorrências, esse valor deve ter crescido substancialmente.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

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