O Estado de S. Paulo
Manifestações como a do deputado Nikolas Ferreira no Dia das Mulheres mostram a incompatibilidade entre bolsonarismo e liberalismo
As candidaturas de 2018 e 2022 de Jair
Bolsonaro contaram com o apoio maciço de alguns grupos sociais, entre eles
setores da comunidade evangélica. O apoio a Bolsonaro em grande parcela dessa
comunidade consolidou-se com as repetidas declarações do ex-presidente a favor
de pautas conservadoras, como a valorização da “família tradicional” e a
crítica à interrupção da gravidez, e contra iniciativas associadas à esquerda,
como as políticas voltadas à comunidade LGBTQIA+.
Durante o mandato do ex-presidente, alguns integrantes do governo associados àquela comunidade deram declarações não só infelizes, mas incompatíveis com o primado dos direitos humanos que orienta o sistema jurídico brasileiro. Exemplo disso foi a declaração da ex-ministra Damares Alves de que a administração Bolsonaro inaugurava “uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”, o que chamou de “metáfora contra a ideologia de gênero”. Já o ex-ministro Milton Ribeiro, em entrevista a este jornal, relacionou a homossexualidade a “famílias desajustadas” e disse que havia adolescentes “optando por ser gay”.
O governo de Jair Bolsonaro se encerrou,
mas os bolsonaristas eleitos para o Congresso Nacional em 2022 parecem querer
manter esse costume. Foi o que se viu no discurso do deputado mais votado do
Brasil, o autodenominado “cristão, conservador e defensor da família” Nikolas
Ferreira (PL-MG), no Dia Internacional da Mulher. No plenário da Câmara dos
Deputados, ele colocou uma peruca loura, apresentou-se como “deputada Nikole” e
criticou os “homens que se sentem mulheres”, dizendo que o lugar das mulheres
está sendo “roubado” por tais homens.
Teve tempo, ainda, de aconselhar as
mulheres brasileiras (“retomem a sua feminilidade, tenham filhos, amem a
maternidade”) e insinuar que mulheres trans podem representar uma ameaça para
crianças em banheiros públicos (“a liberdade (...) de um pai recusar (...) um
homem de 2 metros de altura, um marmanjo, entrar no banheiro da sua filha sem
você ser considerado um transfóbico”).
Manifestações como essa nada mais são do
que a continuação do caminho aberto por Bolsonaro, com sua coleção de
declarações infames e impunes. Mas elas mostram também a incompatibilidade
entre bolsonarismo e liberalismo.
Para provável surpresa dos que identificam
a doutrina liberal com o ex-ministro Paulo Guedes, o liberalismo clássico é uma
doutrina que defende a limitação do poder do Estado em face de diversos
direitos reconhecidos por lei aos indivíduos desse Estado; limitação que deve
ocorrer por meio de instituições públicas dedicadas a garantir o respeito a
esses direitos.
O primeiro deles é a autonomia, isto é, o
igual direito de cada pessoa às próprias escolhas de vida nas várias dimensões
em que ela se desdobra: íntima, profissional, social. Feliz ou infelizmente, o
liberalismo não aponta projetos ou caminhos de vida. Uma sociedade liberal
deixa essas escolhas a seus membros (o que não inviabiliza a atuação do Estado
sobre bens, deficiências ou desigualdades sociais relevantes).
A autonomia individual que marca o
liberalismo deságua na igualdade e na dignidade de todos os seres humanos. Daí
se constrói, por exemplo, o direito de propriedade e de livre iniciativa no
campo econômico, que é onde se concentra o liberalismo normalmente identificado
com o ex-ministro Guedes: mais restrito (em sua extensão) e imoderado (em sua
intensidade) que o liberalismo clássico. É neoliberalismo (econômico).
O liberalismo naturalmente também abraça a
liberdade de expressão, frequentemente recordada pelo bolsonarismo. Mas essa
doutrina não prega a existência de direitos ilimitados; seu objetivo é garantir
o bom funcionamento das sociedades plurais do nosso tempo, integradas por
sujeitos que diferem em seus valores, visões de mundo, opções de vida, etc. Daí
a notável importância do princípio da tolerância nas sociedades liberais.
A tolerância, porém, é a grande ausente de
muitos discursos de adeptos do ex-presidente, como se viu no caso Nikolas
Ferreira. Escondido no que entende como liberdade de expressão e imunidade
parlamentar, o novo aprendiz de Bolsonaro não pretendeu colocar nada em debate.
Se fosse esse o caso, ele não teria associado a pedofilia a pessoas trans (“um
marmanjo entrar no banheiro da sua filha”), mas àqueles que de fato aparecem
nas estatísticas como responsáveis por esse tipo de ato. Se tivesse feito isso,
teria constatado que esses indivíduos usam banheiros (...) masculinos.
Claramente, o único objetivo do deputado
foi aparecer, antagonizar, ridicularizar e, assim, rebaixar um grupo que já é
discriminado dentro e fora do País (além de querer ditar qual deve ser o papel
social das mulheres).
O bolsonarismo se vale de estratégia baixa
e circense para levar à opinião pública pontos de vista simplórios, raramente
relevantes e falsificados. Para seus adeptos, vale tudo contra as pessoas que
não se encaixam em seus padrões, a quem não se confere nem a dignidade da
doutrina liberal nem o amor ao próximo da doutrina cristã.
*Doutor em direito pela USP e pela Università Degli Studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp
O bolsonarismo é um verdadeiro circo dos horrores, é uma quadrilha de preconceituosos, mentirosos, pastores safados e milicianos violentos, dispostos a tudo para impor sua ideologia fascistoide e criminosa.
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