segunda-feira, 27 de março de 2023

Marcus André Melo* - Tiranias imaginárias

Folha de S. Paulo

Reformas institucionais nas democracias focaram na governabilidade

Macron tem sido acusado de aprovar a reforma da Previdência à margem do Parlamento recorrendo a um dispositivo tirânico. A despeito da diferença de regime, os objetivos que levaram a França a introduzir tal dispositivo —artigo 49.3 da Constituição— são similares aos que levaram o Brasil a fazer o mesmo em 1988, quando foram adotadas as medidas provisórias.

Ele faz parte das inovações que "racionalizaram" o parlamentarismo francês, para roubar o título do clássico de John Huber sobre o tema. A Constituição francesa de 1958 foi a resposta de De Gaulle à ingovernabilidade da 4ª República, na qual a duração média dos gabinetes no período foi de seis meses —foram 24 gabinetes distintos sob 16 primeiros-ministros. E isso quando o país enfrentava a crise da Argélia.

O artigo 49.3 autoriza o recurso à aprovação da reforma sem o voto parlamentar em matéria de finanças e Previdência, mas o governo fica automaticamente vulnerável a uma moção de confiança: a rejeição implica dissolução do Parlamento e consequente convocação de eleições gerais (aconteceu com Pompidou, em 1962). Em outros assuntos, o governo só pode fazê-lo uma vez por ano. Em termos estratégicos há uma inversão do ônus político envolvido: não é o governo que tem que construir maioria para aprová-los, mas a oposição, para derrotá-lo. Já foi utilizado 100 vezes, 28 das quais sob um primeiro ministro socialista.

Como mostrou Huber, a inversão teve enorme impacto sobre a capacidade do Executivo de aprovar a sua agenda, e pôs fim a instabilidade ministerial. A reforma introduziu também um sistema semi-presidencial, pelo qual o presidente é diretamente eleito, alavancando sua legitimidade. O espírito da reforma vai na mesma direção do voto construtivo de desconfiança da Constituição alemã de 1949, e adotada pela Espanha: uma maioria parlamentar só pode derrubar um gabinete se simultaneamente apresentar uma alternativa.

Entre nós o diagnóstico de que era preciso fortalecer institucionalmente o poder Executivo no país foi feito com argúcia por Afonso Arinos e Hermes Lima na mesma época, e pela Comissão Especial de Juristas para a reforma constitucional (1956). Ela incluía a proposta, inspirada na Constituição italiana (os provvedimenti provvisori), de decretos com força de lei a serem referendados pelo Congresso (MPs) e de exclusividade de iniciativa de lei em matéria orçamentária e administrativa, criando uma assimetria Executivo-Legislativo. Essas medidas constam da Constituição de 1988, aprovada 32 anos depois.

As MPs criam um estado de coisas, cujos custos de reversão ao status quo ex ante passam a ser arcados pelo Legislativo. Como na França.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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