Valor Econômico
A ideia de que a credibilidade do BC será
tanto maior quanto mais baixa for a meta de inflação não faz sentido
A polêmica que se prolonga há semanas a
respeito da meta de inflação, da taxa de juros e de outros temas relacionados à
atuação do Banco Central tem levantado pontos de vista variados, alguns
procedentes, outros inconsistentes, muitos incongruentes.
Há de tudo: informação manipulada, análises
distorcidas, omissões, especulações, falta de conhecimento, enfim. Ajudam a
engrossar o caldo do falatório com sérios efeitos sobre as expectativas.
A reunião do Conselho Monetário Nacional
(CMN) agendada para quinta-feira recolocou na berlinda a discussão em torno da
mudança da meta de inflação fixada em 3,25% para 2023 (com margem de tolerância
de 1,5 ponto percentual) e em 3% para 2024 e 2025.
Ampliar o nível da inflação a ser perseguida este ano e nos próximos viabilizaria a redução da taxa Selic (juro do BC, hoje em 13,75%) pretendida pelo governo. Se confirmado, não seria a primeira vez. Nem a segunda.
A primeira mudança da meta de inflação
ocorreu em 2002 com Armínio Fraga na presidência do BC.
Todos hão de se lembrar. Era o último ano
do governo FHC, um período complicado, repleto de incertezas quanto ao
resultado das eleições que colocaram frente a frente Luiz Inácio Lula da Silva
e o candidato do PSDB, José Serra.
A taxa Selic começou o ano de 2002 em 19%,
foi reduzida para 18% em meados de julho e mantida nesse patamar até o dia 14
de outubro, quando subiu para 21%. Em dezembro a Selic foi puxada para o nível
de 25%.
Já em meados daquele ano, porém, o BC sabia
que não conseguiria controlar a escalada dos preços. No dia 27 de junho de
2002, o CMN aprovou um aumento nas metas de inflação: a de 2003 passou de 3,25%
(com margem de 2 pontos percentuais) para 4% e a de 2004 foi fixada em 3,75%.
As novas metas tiveram o limite de tolerância ampliado para 2,5 pontos
percentuais. Mas isso não foi suficiente. O IPCA chegou a 12,5% em fins de
2002.
No mês seguinte, no início do primeiro
governo Lula e sob a liderança de Henrique Meirelles no Banco Central, a meta
subiu novamente. Desta vez, o BC valeu-se de uma gambiarra ao introduzir um
ajuste que passou ao largo do crivo do CMN: a meta de 4% aprovada em junho para
2003 foi fixada em 8,5% ao mesmo tempo em que a meta de 2004 foi ajustada para
5,5%, mantida a margem de 2,5 pontos, conforme carta endereçada em 21 de
janeiro de 2003 ao ministro da Fazenda da época.
Apelou-se para o efeito da inércia e do
choque dos preços administrados mencionado no Relatório da Inflação de 2002,
abrindo assim espaço para flexibilizar a condução da política monetária sem
perder o objetivo das metas de inflação. De fato, a meta original de 4% para
2003 nunca foi formalmente abandonada a despeito de ter sido ampliada para
8,5%. A meta de 5,5% para 2004 só foi referendada pelo CMN em 25 de junho de
2003.
Na carta de 21 de janeiro, Meirelles falou
em “perdas expressivas do crescimento do produto” para justificar a revisão. No
texto, ele indica que a meta de 8,5% viabilizaria crescimento de 2,8% do PIB em
2003, enquanto que uma inflação de 6,5% - o limite superior da meta original
definida em junho de 2002 - provocaria queda de 1,6% do PIB. O PIB de 2003
nunca chegou a 2,8%, mas foi positivo em 1,14%. Em 2004, o país cresceu 5,76%.
Vale lembrar que a meta de inflação,
introduzida em 1999, ficou fora dos limites máximos de tolerância em 2001,
2002, 2003, 2015, 2017, 2021 e 2022.
A questão, no entanto, não deve esgotar-se
no nível das metas. Há hoje um ponto fundamental mantido na penumbra que remete
à uma pergunta de irrefutável procedência: de que inflação se está a falar?
Muito embora pouco se diga, não há dúvida
de que os índices de preços foram manipulados em 2022 com a redução dos
impostos sobre os combustíveis e outras artimanhas que puxaram a inflação
artificialmente para baixo. Algo, aliás, que nunca foi formalmente contestado
pela atual diretoria do Banco Central a despeito das implicações que tem na
condução da política monetária, sem mencionar o caráter intervencionista da
medida.
Não fosse a manipulação do governo
Bolsonaro com aval do Congresso Nacional, a inflação teria sido de 9,07%, bem
acima dos 5,79% anunciados pelo IBGE. Os cálculos são do economista Luiz
Roberto Cunha, catedrático da PUC-RJ e um dos maiores especialistas no estudo
da formação dos preços.
Ele considerou o impacto da redução dos
tributos sobre os combustíveis e concluiu que só a gasolina, com peso de 4,5%,
teve deflação de 25,78%. Vantagens tributárias além da mudança na bandeira
redundaram em deflação de 19,01% nos preços da energia elétrica (peso de 3,5%
no IPCA). Também houve impacto em alguns preços de comunicação.
O item transporte acusou variação negativa
de 1,30% no IPCA em contraponto ao aumento de 9,82% nos preços finais sem a
redução tributária. A variação na habitação teria sido positiva em 3,26% contra
0,08% apontado no ano passado.
A realidade inflacionária do país será
conhecida com o fim da desoneração dos impostos sobre os combustíveis e não
pode ser desconsiderada pelo BC.
Mas não apenas por isso a meta de 3,25% é
irrealista.
Quando foi fixada, em junho de 2020, o
mundo vivia a estagnação da pandemia. Resultou dali a desorganização das
cadeias produtivas, não totalmente regeneradas, e políticas comerciais
protecionistas. A guerra na Ucrânia agravou o cenário das pressões
inflacionárias. Este é o lado objetivo da questão.
O lado subjetivo revela uma incongruência
na discussão. A ideia de que a credibilidade do BC será tanto maior quanto mais
baixas forem as metas de inflação, uma mimese dos países desenvolvidos, não faz
sentido. Ignora a tremenda desigualdade de renda, a baixa produtividade da
economia e os 200 mil gargalos que puxam o Brasil para trás.
Uma palavra final: a autonomia operacional
do BC foi conquistada pelo empenho dos técnicos que passaram pela área
econômica do governo ao longo dos anos e precisa ser preservada como uma
conquista de todos. Não deve ser confundida, no entanto, com independência, um
erro primário que os melhores analistas cometem.
Os "melhores" analistas não são tão bons quanto eles se acham e nem como seus colegas papagaios dizem que eles seriam!
ResponderExcluirParabéns à autora e ao blog por este texto tão informativo!