terça-feira, 14 de março de 2023

Maria Clara R. M. do Prado - De metas, juros e inflação

Valor Econômico

A ideia de que a credibilidade do BC será tanto maior quanto mais baixa for a meta de inflação não faz sentido

A polêmica que se prolonga há semanas a respeito da meta de inflação, da taxa de juros e de outros temas relacionados à atuação do Banco Central tem levantado pontos de vista variados, alguns procedentes, outros inconsistentes, muitos incongruentes.

Há de tudo: informação manipulada, análises distorcidas, omissões, especulações, falta de conhecimento, enfim. Ajudam a engrossar o caldo do falatório com sérios efeitos sobre as expectativas.

A reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN) agendada para quinta-feira recolocou na berlinda a discussão em torno da mudança da meta de inflação fixada em 3,25% para 2023 (com margem de tolerância de 1,5 ponto percentual) e em 3% para 2024 e 2025.

Ampliar o nível da inflação a ser perseguida este ano e nos próximos viabilizaria a redução da taxa Selic (juro do BC, hoje em 13,75%) pretendida pelo governo. Se confirmado, não seria a primeira vez. Nem a segunda.

A primeira mudança da meta de inflação ocorreu em 2002 com Armínio Fraga na presidência do BC.

Todos hão de se lembrar. Era o último ano do governo FHC, um período complicado, repleto de incertezas quanto ao resultado das eleições que colocaram frente a frente Luiz Inácio Lula da Silva e o candidato do PSDB, José Serra.

A taxa Selic começou o ano de 2002 em 19%, foi reduzida para 18% em meados de julho e mantida nesse patamar até o dia 14 de outubro, quando subiu para 21%. Em dezembro a Selic foi puxada para o nível de 25%.

Já em meados daquele ano, porém, o BC sabia que não conseguiria controlar a escalada dos preços. No dia 27 de junho de 2002, o CMN aprovou um aumento nas metas de inflação: a de 2003 passou de 3,25% (com margem de 2 pontos percentuais) para 4% e a de 2004 foi fixada em 3,75%. As novas metas tiveram o limite de tolerância ampliado para 2,5 pontos percentuais. Mas isso não foi suficiente. O IPCA chegou a 12,5% em fins de 2002.

No mês seguinte, no início do primeiro governo Lula e sob a liderança de Henrique Meirelles no Banco Central, a meta subiu novamente. Desta vez, o BC valeu-se de uma gambiarra ao introduzir um ajuste que passou ao largo do crivo do CMN: a meta de 4% aprovada em junho para 2003 foi fixada em 8,5% ao mesmo tempo em que a meta de 2004 foi ajustada para 5,5%, mantida a margem de 2,5 pontos, conforme carta endereçada em 21 de janeiro de 2003 ao ministro da Fazenda da época.

Apelou-se para o efeito da inércia e do choque dos preços administrados mencionado no Relatório da Inflação de 2002, abrindo assim espaço para flexibilizar a condução da política monetária sem perder o objetivo das metas de inflação. De fato, a meta original de 4% para 2003 nunca foi formalmente abandonada a despeito de ter sido ampliada para 8,5%. A meta de 5,5% para 2004 só foi referendada pelo CMN em 25 de junho de 2003.

Na carta de 21 de janeiro, Meirelles falou em “perdas expressivas do crescimento do produto” para justificar a revisão. No texto, ele indica que a meta de 8,5% viabilizaria crescimento de 2,8% do PIB em 2003, enquanto que uma inflação de 6,5% - o limite superior da meta original definida em junho de 2002 - provocaria queda de 1,6% do PIB. O PIB de 2003 nunca chegou a 2,8%, mas foi positivo em 1,14%. Em 2004, o país cresceu 5,76%.

Vale lembrar que a meta de inflação, introduzida em 1999, ficou fora dos limites máximos de tolerância em 2001, 2002, 2003, 2015, 2017, 2021 e 2022.

A questão, no entanto, não deve esgotar-se no nível das metas. Há hoje um ponto fundamental mantido na penumbra que remete à uma pergunta de irrefutável procedência: de que inflação se está a falar?

Muito embora pouco se diga, não há dúvida de que os índices de preços foram manipulados em 2022 com a redução dos impostos sobre os combustíveis e outras artimanhas que puxaram a inflação artificialmente para baixo. Algo, aliás, que nunca foi formalmente contestado pela atual diretoria do Banco Central a despeito das implicações que tem na condução da política monetária, sem mencionar o caráter intervencionista da medida.

Não fosse a manipulação do governo Bolsonaro com aval do Congresso Nacional, a inflação teria sido de 9,07%, bem acima dos 5,79% anunciados pelo IBGE. Os cálculos são do economista Luiz Roberto Cunha, catedrático da PUC-RJ e um dos maiores especialistas no estudo da formação dos preços.

Ele considerou o impacto da redução dos tributos sobre os combustíveis e concluiu que só a gasolina, com peso de 4,5%, teve deflação de 25,78%. Vantagens tributárias além da mudança na bandeira redundaram em deflação de 19,01% nos preços da energia elétrica (peso de 3,5% no IPCA). Também houve impacto em alguns preços de comunicação.

O item transporte acusou variação negativa de 1,30% no IPCA em contraponto ao aumento de 9,82% nos preços finais sem a redução tributária. A variação na habitação teria sido positiva em 3,26% contra 0,08% apontado no ano passado.

A realidade inflacionária do país será conhecida com o fim da desoneração dos impostos sobre os combustíveis e não pode ser desconsiderada pelo BC.

Mas não apenas por isso a meta de 3,25% é irrealista.

Quando foi fixada, em junho de 2020, o mundo vivia a estagnação da pandemia. Resultou dali a desorganização das cadeias produtivas, não totalmente regeneradas, e políticas comerciais protecionistas. A guerra na Ucrânia agravou o cenário das pressões inflacionárias. Este é o lado objetivo da questão.

O lado subjetivo revela uma incongruência na discussão. A ideia de que a credibilidade do BC será tanto maior quanto mais baixas forem as metas de inflação, uma mimese dos países desenvolvidos, não faz sentido. Ignora a tremenda desigualdade de renda, a baixa produtividade da economia e os 200 mil gargalos que puxam o Brasil para trás.

Uma palavra final: a autonomia operacional do BC foi conquistada pelo empenho dos técnicos que passaram pela área econômica do governo ao longo dos anos e precisa ser preservada como uma conquista de todos. Não deve ser confundida, no entanto, com independência, um erro primário que os melhores analistas cometem.

 

Um comentário:

  1. Os "melhores" analistas não são tão bons quanto eles se acham e nem como seus colegas papagaios dizem que eles seriam!
    Parabéns à autora e ao blog por este texto tão informativo!

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