sexta-feira, 10 de março de 2023

Maria Cristina Fernandes - O país mais perto de saber quem mandou matar Marielle

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Cinco anos depois do assassinato da vereadora e de seu motorista, caso ganha o reforço do delegado que “investigou a investigação” do crime e prendeu o “faraó dos bitcoins”

Quando o procurador-geral de Justiça do Rio, Luciano Mattos, entrou no gabinete do ministro da Justiça na manhã do dia 15 de fevereiro, ficou patente o desgaste que enfrentara, um mês antes, na sua recondução ao cargo. Ele pediu a Flávio Dino que não federalizasse a investigação da morte da vereadora Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes. Comprometeu-se a colocar oito procuradores para acelerar a elucidação do caso, que completa cinco anos em 14 de março.

Seus temores tinham fundamento. Um mês antes, 29 promotores do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) haviam pedido exoneração do cargo em protesto contra a recondução de Mattos. Apresentavam como justificativa para sua decisão o compromisso ignorado pelo procurador-geral em respeitar o resultado da lista tríplice que o havia colocado em segundo lugar na disputa, com 48 votos a menos do que Leila Machado, procuradora que recebeu o apoio de 485 colegas.

Ao longo de sua gestão, os dois casos de maior repercussão da procuradoria, o assassinato de Marielle e Anderson e as denúncias contra o gabinete do senador Flavio Bolsonaro, estancaram. Foi na gestão anterior, de Eduardo Gussem, que o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Vieira foram presos como executores do crime, e que o primogênito do ex-presidente foi denunciado pela prática de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio. Uma semana depois da visita de Mattos a Dino, Gussem apareceu como um daqueles que tiveram seu sigilo fiscal devassado pela Receita Federal na gestão Jair Bolsonaro.

Quando Mattos deixou seu gabinete, o ministro chamou o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, e o superintendente da PF, Leandro Almada. Delegado da PF desde 2008 e empossado na superintendência do Rio na semana anterior, Almada já havia feito a “investigação da investigação” do caso Marielle em 2019, tendo concluído, em relatório de 592 páginas, que PMs e advogados plantaram uma testemunha alheia ao caso para obstruir o trabalho da Justiça junto a um delegado de sua própria corporação. E argumentou com Rodrigues e Dino que a PF precisava ter seu próprio inquérito.

A lei 10.446, de 2002, autoriza a atuação da PF em infrações penais de repercussão nacional. Foi aprovada dois anos antes da proposta de emenda constitucional que avalizou a federalização de investigações quando aquela conduzida por agentes locais se mostrar inócua. A opção foi pela atuação complementar da PF por 90 dias. Se as instâncias locais não atuarem nesse prazo, diz Dino, o caso será federalizado.

Alvo, desde a transição, das investidas do PT pela criação de uma pasta de segurança pública, Dino tem, na elucidação deste caso, uma oportunidade de blindar seu ministério do fogo amigo. A ofensiva só cresceu depois de 8 de janeiro, quando os petistas o acusam de ter confiado demais no governador afastado do Distrito Federal, Ibaneis Rocha.

O caso Marielle, como mostraram Chico Otávio e Vera Araújo, jornalistas de “O Globo” que acompanham a investigação desde o início e escreveram “Mataram Marielle” (Intrínseca, 2020), encobre o entrelaçamento das polícias com o crime organizado.

Dino vai lançar um programa de ocupação de territórios violentos na periferia das grandes cidades, uma espécie de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) aliada a iniciativas de cultura e educação. É um híbrido da experiência de policiamento comunitário no Rio com os Cieps brizolistas. Há programas em Pernambuco e no Pará pioneiros neste cruzamento. Pretende-se financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento para reproduzi-lo em escala nacional.

Por mais que esta abordagem ofereça uma alternativa ao aliciamento da juventude periférica pelo crime, não há como endereçar os problemas da segurança pública sem desbaratar as estruturas criminosas incrustradas nas polícias de todo o país. Por isso o caso Marielle é tão central para a pasta da Justiça.

Depois de acompanhar todas as crises que envolveram o caso desde a publicação de seu livro, no final de 2020, Chico Otávio pondera o otimismo. Diz que não está claro, por exemplo, se o Ministério Público do Rio vai compartilhar provas. “Se não o fizer, a PF não vai conseguir chegar a lugar algum”, diz.

O autor de “Mataram Marielle” foi o primeiro a noticiar o afastamento das duas dedicadas promotoras do Ministério Público do Rio, Letícia Petiz e Simone Sibilio, em 2021, por terem sido alijadas da delação de Julia Lotufo, mulher do capitão do Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio Adriano da Nóbrega, expoente do crime organizado do Rio morto em 2020 num sítio em que se escondia na Bahia.

A outra dúvida que surge é sobre o risco de interferência dos tribunais superiores na apuração. As tentativas de entrada da Polícia Federal no caso já foram rechaçadas pelo Superior Tribunal de Justiça. Num voto acompanhado pelos oito ministros da Terceira Seção do STJ, a relatora Laurita Vaz atestou que “não há sombra de descaso, desinteresse, desídia ou falta de condições pessoais ou materiais das instituições estaduais encarregadas de investigar, processar e punir os eventuais responsáveis pela grave violação a direitos humanos”.

Se a decisão do STJ chegou a ser aplaudida, ao longo do mandato Jair Bolsonaro, em virtude das associações da família do ex-presidente com personagens envolvidos, como Adriano da Nóbrega, as mesmas suspeitas não parecem atingir a federalização hoje.

Ao longo dos cinco anos desde a morte de Marielle, nenhuma das pistas de envolvimento da família Bolsonaro com o caso se mostraram conclusivas. A começar pela mais estridente delas, o depoimento do porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde Ronnie Lessa era vizinho do ex-presidente. Ele chegou a atestar a autorização de “seu Jair” para a entrada de Elcio no dia do assassinato, mas depois que Bolsonaro provou estar em Brasília naquele dia, mudou sua versão. O Ministério Público do Rio confirmaria que a voz no interfone era do próprio Lessa.

A maior dificuldade para o avanço da investigação é mesmo a autoproteção das estruturas das polícias, do Ministério Público e do judiciário no Rio que mantêm vínculos com as milícias e com o crime organizado. Sobrevivem a sucessivos governos de plantão. Expoente desta rede, o ex-secretário de Polícia Civil do Rio Allan Turnowski chegou a ser preso por suspeita de organização criminosa e envolvimento com o jogo do bicho em setembro do ano passado, mas teve sua prisão revogada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Kassio Nunes Marques um mês depois.

Ao se declarar favorável à entrada da Polícia Federal no caso, o governador do Rio, Claudio Castro, que mantém uma boa relação com o ministro Flavio Dino e foi colega de Marielle na Câmara de Vereadores do Rio, sugere que a caixa-preta do crime organizado e das milícias no Estado ultrapassa os poderes do Palácio da Guanabara.

Os conflitos entre o ex-governador Wilson Witzel, um ex-bolsonarista que rompeu com o ex-presidente no início de sua gestão e acabou cassado pela Alerj, contribuíram para tumultuar a atuação das polícias e do MP com o plantio de pistas falsas na investigação. Witzel tentou uma reunião no Palácio do Planalto em fevereiro, e a Secretaria de Comunicação Social da Presidência informou que ele sequer foi recebido.

Se o governo federal enxotou Witzel, acolheu, no Ministério do Turismo, uma parlamentar do União Brasil do Rio, Daniela do Waguinho, cuja base eleitoral foi construída com apoio das milícias.

Apesar da conjuntura política mais favorável à investigação, seu principal desafio está na sofisticação com a qual o assassinato foi tramado, graças à inserção dos executores no sistema policial. Como foi “adido” na Polícia Civil, condição em que o PM é cedido, Ronnie Lessa conheceu por dentro as artimanhas do crime e a evolução da investigação policial para desvendá-los, como a operação para adulterar o carro utilizado, o uso de munição originária de um lote disseminado pelas polícias no Brasil inteiro para a Olimpíada e a escolha de um trajeto com câmeras de vídeo desligadas.

Foi o rastreamento do histórico de buscas sobre a agenda de Marielle e o acesso ao Google Maps de Lessa sobre a vereadora e seus familiares, dizem Chico Otávio e Vera Araújo, que foi determinante para sua identificação como executores do assassinato.

As apostas de que, além da autoria do assassinato pelos ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, a nova investida resulte na elucidação sobre os mandantes decorrem não apenas da nomeação de Almada para a superintendência da PF no Rio, como do Setor de Inteligência Policial que ficará encarregado da investigação. Quem conduz o setor é o delegado Guilhermo de Paula Machado Catramby.

Catramby liderou a Operação Kryptos, da Polícia Federal, que prendeu Glaidson Acácio dos Santos, o “faraó dos bitcoins”. Ex-garçom e ex-pastor da Igreja Universal, Glaidson movimentou, a partir da Região dos Lagos, no Rio, R$ 38 bilhões e lesou cerca de 300 mil pessoas. Preso em agosto de 2021, Glaidson ficou em Bangu I, na zona oeste do Rio, até janeiro deste ano, tendo sido transferido para o presídio federal em Catanduvas, no Paraná.

A expectativa é de que se esta equipe, a partir de uma investigação do Ministério Público do Rio e cruzamento de informações do Ministério Público Federal, da Receita, da Procuradoria da Fazenda Nacional e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, foi capaz de desbaratar um esquema de pirâmide financeira fraudulenta com criptomoedas, cujo comando tinha proteção de PMs, também poderá reconstituir os caminhos que levarão aos mandantes do assassinato de Marielle e Anderson.

Maria Cristina Fernandes,

 

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