segunda-feira, 13 de março de 2023

Miguel de Almeida - O espólio de Lula

O Globo

Política se faz com jogadas futuras, mesmo no Brasil, onde o passado é incerto

Mal começou o novo governo, e os tuítes da peremptória Gleisi Hoffmann revelam a disputa pelo espólio de Lula. É quase falta de educação. Não se sabe se de fato o presidente tentará um novo mandato, embora já tenha anunciado a ideia de buscar a reeleição. Como ensinam os manuais, justamente para não tomar café frio e evitar engolir mais sapos do Juscelino, pediu para continuar no jogo.

Pode ser truque de cena. Só que política se faz com jogadas futuras — mesmo no Brasil, onde o passado é incerto. Gleisi, sutil como Dilma Rousseff, já briga antes de chegar a sobremesa e, se deseja azedar Fernando Haddad, de outro lado se vê obrigada a colocar na mesa suas receitas de país. E é uma gororoba de sabor soviético, de cepa leninista-stalinista, misturada à visão de estadista de Guido Mantega com aromas geiselistas.

Como se aprende na escola, foram três momentos infelizes da História humana, uma tríade de desastres de sabores amargos. É triste, apenas no Brasil ocorre a junção de filosofias econômicas aparentemente díspares, onde a direita cria, e a esquerda copia; quando ambos os espectros são nacionalistas — a direita por oportunismo (medo da concorrência internacional), a esquerda… também por oportunismo (medo das outras correntes de esquerda). Difícil um petista negar que os seus governos não emularam o modelo de desenvolvimento do Brasil grande e estatal de Ernesto Geisel.

Agora a realidade é outra. Antes havia o arranjo econômico-administrativo feito pelos tucanos e um vento a favor da economia mundial. Em 2023, há o rebotalho Bolsonaro-Guedes com um receio de recessão mundial. Porém a receita de Gleisi continua a mesma dos anos 1920, 1970 e 2000. A seguir seus tuítes, é possível que… novamente dê errado. Ou a inflação e as taxas de desemprego dilmistas também foram um golpe?

Queira ou não, a sucessão de Lula já está na mesa. Com ou sem ele. É um fato petista. Daí as mensagens taxativas de Gleisi. Para ocupar espaço e queimar desafetos. Também sabotar adversários. Basta ver seu esforço em escantear Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente, sob a curiosa escusa de ela ser internacionalmente muito respeitada e poder fazer sombra a Lula. A régua alcança apenas Daniela do Waguinho.

O primeiro round são as eleições do próximo ano. Não apenas porque o PT precisa conquistar protagonismo municipal, definhado desde o mensalão e a Lava-Jato. Também pela própria falta de renovação de seus quadros. Ora envelhecidos, ora ancorados nos TCUs deste mundão de Deus.

A disputa em São Paulo será crítica. Devem se enfrentar duas das maiores novidades da política brasileira — Guilherme Boulos e Tabata Amaral. Há um boato, seguido de aboio, de que Ricardo Salles deseja ser candidato. Mais parece uma piada que uma ameaça — o bolsonarismo paulistano é somente uma franja na frente dos quartéis. Além de a direita vir bastante congestionada, com o atual prefeito Ricardo Nunes e o ex-governador Rodrigo Garcia, ambos filhotes de João Doria. Algo como uma Covid-20 e 21.

Boulos e Tabata são duas figuras instigantes, com visões distintas de país, mas ambos escandindo temas em áreas necessitadas de intervenções urgentes. Problemáticas até a medula. Da educação à moradia, do direito à cidade à metrópole inteligente, do lazer à capital de serviços e do transporte público ao uso racional do automóvel.

Boulos, mais à esquerda, e Tabata, na centro-esquerda, devem duelar no campo das propostas e das ideias mais contemporâneas e criativas — haja vista suas últimas campanhas. Capazes de agregar várias facetas da sociedade. Parece uma reprise da eleição municipal de 2020, quando se enfrentaram o tucano Bruno Covas, de centro-esquerda, e Boulos, do PSOL, deixando o candidato do PT tossindo na poeira. Deu Covas.

A ausência do PT na próxima eleição municipal, caso seja cumprida a promessa de Lula de apoiar Boulos já no primeiro turno (eu não acredito em juras petistas, deixo anotado), deverá possibilitar a ebulição de novos ares na esquerda. Curiosamente, os três prefeitos petistas — Luiza Erundina, Marta Suplicy e Fernando Haddad, todos na centro-esquerda —comeram prego com serragem na mão de suas bancadas, sempre caudatárias da máquina corporativista do partido. Eram maiores e mais modernos que o PT. Não à toa, Erundina e Marta pularam fora da barca, e Haddad, não fosse sua fidelidade a Lula — por desejos recônditos de Gleisi —, já seria um corpo jogado ao mar.

São Paulo, berço do PT e do finado PSDB, talvez desenhe os novos contornos da esquerda brasileira, com a disputa entre Boulos e Tabata. Uma esquerda mais europeia, alemã principalmente, e menos latino-americana. A mesquinha visão do nós contra eles merece ser derrotada.

 

Um comentário: