O Globo
Política se faz com jogadas futuras, mesmo
no Brasil, onde o passado é incerto
Mal começou o novo governo, e os tuítes da
peremptória Gleisi
Hoffmann revelam a disputa pelo espólio de Lula.
É quase falta de educação. Não se sabe se de fato o presidente tentará um novo
mandato, embora já tenha anunciado a ideia de buscar a reeleição. Como ensinam
os manuais, justamente para não tomar café frio e evitar engolir mais sapos do
Juscelino, pediu para continuar no jogo.
Pode ser truque de cena. Só que política se faz com jogadas futuras — mesmo no Brasil, onde o passado é incerto. Gleisi, sutil como Dilma Rousseff, já briga antes de chegar a sobremesa e, se deseja azedar Fernando Haddad, de outro lado se vê obrigada a colocar na mesa suas receitas de país. E é uma gororoba de sabor soviético, de cepa leninista-stalinista, misturada à visão de estadista de Guido Mantega com aromas geiselistas.
Como se aprende na escola, foram três
momentos infelizes da História humana, uma tríade de desastres de sabores
amargos. É triste, apenas no Brasil ocorre a junção de filosofias econômicas
aparentemente díspares, onde a direita cria, e a esquerda copia; quando ambos
os espectros são nacionalistas — a direita por oportunismo (medo da
concorrência internacional), a esquerda… também por oportunismo (medo das
outras correntes de esquerda). Difícil um petista negar que os seus governos
não emularam o modelo de desenvolvimento do Brasil grande e estatal de Ernesto
Geisel.
Agora a realidade é outra. Antes havia o
arranjo econômico-administrativo feito pelos tucanos e um vento a favor da
economia mundial. Em 2023, há o rebotalho Bolsonaro-Guedes com um receio de recessão
mundial. Porém a receita de Gleisi continua a mesma dos anos 1920, 1970 e 2000.
A seguir seus tuítes, é possível que… novamente dê errado. Ou a inflação e as
taxas de desemprego dilmistas também foram um golpe?
Queira ou não, a sucessão de Lula já está
na mesa. Com ou sem ele. É um fato petista. Daí as mensagens taxativas de
Gleisi. Para ocupar espaço e queimar desafetos. Também sabotar adversários.
Basta ver seu esforço em escantear Marina Silva do
Ministério do Meio Ambiente, sob a curiosa escusa de ela ser internacionalmente
muito respeitada e poder fazer sombra a Lula. A régua alcança apenas Daniela do
Waguinho.
O primeiro round são as eleições do próximo
ano. Não apenas porque o PT precisa conquistar protagonismo municipal,
definhado desde o mensalão e a Lava-Jato. Também pela própria falta de
renovação de seus quadros. Ora envelhecidos, ora ancorados nos TCUs deste
mundão de Deus.
A disputa em São Paulo será crítica. Devem
se enfrentar duas das maiores novidades da política brasileira — Guilherme
Boulos e Tabata Amaral.
Há um boato, seguido de aboio, de que Ricardo Salles deseja ser candidato. Mais
parece uma piada que uma ameaça — o bolsonarismo paulistano é somente uma
franja na frente dos quartéis. Além de a direita vir bastante congestionada,
com o atual prefeito Ricardo Nunes e o ex-governador Rodrigo Garcia, ambos
filhotes de João Doria. Algo como uma Covid-20 e 21.
Boulos e Tabata são duas figuras
instigantes, com visões distintas de país, mas ambos escandindo temas em áreas
necessitadas de intervenções urgentes. Problemáticas até a medula. Da educação
à moradia, do direito à cidade à metrópole inteligente, do lazer à capital de
serviços e do transporte público ao uso racional do automóvel.
Boulos, mais à esquerda, e Tabata, na
centro-esquerda, devem duelar no campo das propostas e das ideias mais
contemporâneas e criativas — haja vista suas últimas campanhas. Capazes de
agregar várias facetas da sociedade. Parece uma reprise da eleição municipal de
2020, quando se enfrentaram o tucano Bruno Covas, de centro-esquerda, e Boulos,
do PSOL, deixando o candidato do PT tossindo na poeira. Deu Covas.
A ausência do PT na próxima eleição
municipal, caso seja cumprida a promessa de Lula de apoiar Boulos já no
primeiro turno (eu não acredito em juras petistas, deixo anotado), deverá possibilitar
a ebulição de novos ares na esquerda. Curiosamente, os três prefeitos petistas
— Luiza Erundina, Marta Suplicy e Fernando Haddad, todos na centro-esquerda
—comeram prego com serragem na mão de suas bancadas, sempre caudatárias da
máquina corporativista do partido. Eram maiores e mais modernos que o PT. Não à
toa, Erundina e Marta pularam fora da barca, e Haddad, não fosse sua fidelidade
a Lula — por desejos recônditos de Gleisi —, já seria um corpo jogado ao mar.
São Paulo, berço do PT e do finado PSDB,
talvez desenhe os novos contornos da esquerda brasileira, com a disputa entre
Boulos e Tabata. Uma esquerda mais europeia, alemã principalmente, e menos
latino-americana. A mesquinha visão do nós contra eles merece ser derrotada.
Esquerda versus centro esquerda.
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