Folha de S. Paulo
Inferno, dizia Machado de Assis, 'é o
hospício dos incuráveis'
Uma certa psiquiatria tem contas a prestar à Justiça. Não
à toa, um saudoso amigo revelou-me certa vez a circunstância de sua exclusiva
dedicação à psicanálise: "Uma paciente me curou da psiquiatria. Num
encontro de rua, me surrou com um guarda-chuva, chamando-me de
carcereiro". Esse incidente com um grande profissional do ramo, já
falecido, vem à mente a propósito de um recente episódio de sequestro no bairro
machadiano do Catete, zona sul do Rio.
Segundo o jornal, uma senhora de 65 anos fazia seu passeio matinal no Catete, do qual ainda se diz que é um passeio pela história, quando foi abordada por dois homenzarrões, que a enfurnaram numa ambulância. Ali começava uma absurda pequena história. Levada a uma clínica psiquiátrica em Petrópolis, foi internada num quarto exíguo, onde passou um dia sem água e alimentos. Gritou por socorro ante os olhares indiferentes de médicos e enfermeiros.
Terminou descobrindo que a filha havia
pedido a sua internação até que se retratasse de uma queixa apresentada a
autoridades sobre maus tratos aos netos. Transferida para outra clínica na
mesma região, conseguiu comunicar-se com a polícia carioca, mais de duas
semanas depois. A delegacia levou a denúncia a sério, resgatou a idosa, prendeu
a filha e o marido. Ao que tudo indica, lhe cobiçavam também a pensão.
Inferno, dizia Machado de Assis, "é o
hospício dos incuráveis". A vítima da abominação conheceu dias infernais,
mas resta saber a quem se aplica hoje a palavra "incurável", se aos
internos ou aos guardiões. É espantoso que, num século de informação
exponencial sobre o ser vivo e seu psiquismo, se possa capturar e reter num
hospício uma pessoa, sem qualquer avaliação racional. Disso Machado fez
obra-prima, "O Alienista". Agora, são caso de polícia as
clínicas e a própria "ciência" carcereira.
Nesse episódio extravagante, é esdrúxulo,
embora não surpreendente, o fato de que a filha acusada portava uma arma no
instante da prisão, a mesma que aparece empunhando nas redes, vestida com uma
camiseta do inominável, na data seguinte à invasão aos Três Poderes. Na teia da criminalidade, um fio
puxa outro, e já se começa a investigar a morte do irmão em circunstâncias
suspeitas, no ano passado.
Reiteração criminosa é a designação
policial para o fenômeno. Inevitável ligá-lo a outros incidentes sob o clima
tóxico do passado recente, que cobrem um espectro de homicídios e destruições
em surtos de fúria explosiva. A cara do inominável não é mera caricatura: ainda
parece funcionar como pavio inflamável de um foco alucinatório, que trouxe de
porões e cloacas a matéria criminogênica da teia incivil, normalizando o pior.
Nela se juntam alienados e alienistas.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô".
"Reiteração criminosa". Sim, é a sequência de crimes cometidos por Jair Bolsonaro e sua quadrilha (ou seu ministério), desde a posse até a fuga covarde para os EUA no último dia do mandato.
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