O Estado de S. Paulo
País tem de defender seus valores ocidentais e preservar seus interesses asiáticos. Será importante evitar alinhamentos automáticos
Depois da bipolarização da guerra fria, com
a queda do muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1991, surgiu
uma nova ordem global. Emergiu um mundo unipolar com os EUA como a única
superpotência e com a globalização financeira, econômica e comercial, gerando a
expansão econômica liberal e o crescimento da economia global. Essa ordem
mundial começou a mudar na primeira década do século 21 com a volta da China
como potência e o início da disputa com os EUA pela hegemonia global.
A guerra da Rússia na Ucrânia, o fato mais relevante desde a queda do muro de Berlim, em 1989, marca o início de uma nova era e, ao contrário da situação que prevaleceu nos últimos 20 anos, representa a prevalência da geopolítica, com ênfase na segurança nacional, sobre a economia e a globalização. Sem perspectiva para a suspensão das hostilidades na Ucrânia, é real a possibilidade de escalada do conflito com a utilização de armas nucleares táticas de consequências imprevisíveis. O rearmamento da Alemanha e do Japão, com o aumento dos gastos com defesa, o esvaziamento do G-7 e do G20, além dos custos elevados da energia, são outras características da nova ordem internacional, que ocorre simultaneamente à consolidação da nova ordem econômica global.
Nesse contexto, está se conformando um
mundo dividido em torno de novos eixos, com a perspectiva de confrontação do
Ocidente (EUA e Europa) com a Eurásia (China, Rússia e outros países da Ásia).
Emerge, na narrativa ocidental, um mundo bipolar, mas em outras bases, visto
que a disputa entre Washington e Pequim não é sobre a supremacia ideológica ou
militar, mas econômica, comercial e tecnológica, até aqui. Na visão chinesa e
russa, surge uma ordem multipolar, pós-ocidental, a do Ocidente versus o resto
do mundo. De um lado, acelerou uma aliança estratégica, sem limites, em todas as
áreas entre a China e a Rússia e, de outro, fortaleceu a aliança dos EUA com os
países membros da Otan com o apoio à Ucrânia.
Hoje, considerações de ordem geopolítica
impactam sobre a política externa, de defesa e comercial de todos os países.
Apesar da declaração de Joe Biden de que não vai pedir que os países escolham
um lado na divisão global, não será surpresa se lealdades começarem a ser
cobradas, sobretudo se houver uma escalada bélica e o conflito se ampliar além
da Ucrânia. O governo de Washington está discutindo uma nova postura no
relacionamento bilateral com a China e medidas contra países que ajudam a
Rússia a contornar sanções. Restrições no comércio de semicondutores e de
produtos de uso dual, como produtos eletroeletrônicos, de telecomunicações, de
tecnologia da informação e de lazer, chips e sensores deverão surgir.
Os EUA estão em guerra não declarada em
duas frentes com a Rússia e com a China. A Estratégia de Segurança Nacional
norte-americana, recém-divulgada, e o discurso de Xi Jinping, no Congresso do
Partido Comunista, confirmam isso. A guerra fria, do ângulo do establishment
dos EUA, nunca terminou, e agora, no Congresso, adquire formas irracionais e
paranoicas em relação à China. O ministro do Exterior chinês advertiu para os
riscos de um conflito direto com os EUA, caso não cessem as medidas contra
Pequim. As relações entre EUA e China encontram-se no nível mais baixo da
História, com a crescente tensão em relação a Taiwan, a possibilidade de
entrega de armas à Rússia e a expansão dos interesses da Otan no Mar do Sul da
China, agravadas pelo incidente com balão chinês em território norte-americano
e as medidas de restrições comerciais (semicondutores) anunciadas por
Washington.
Caso esse cenário se confirme, países como
o Brasil terão de enfrentar difíceis opções de política externa. O Brasil foi
colocado pelos EUA como aliado estratégico extra-Otan e faz parte do Brics com
a Rússia, Índia, China e África do Sul. Compartilhando valores do Ocidente
(democracia, livre comércio, imprensa livre) e com estreitos laços comerciais,
econômicos, culturais e de defesa com os EUA e países europeus, o Brasil tem
hoje interesses concretos a defender na Ásia, nossa maior parceira comercial. O
Brasil tem de defender seus valores ocidentais e preservar seus interesses
asiáticos. Ao contrário dos que defendem que o Brasil terá de escolher um lado
– o dos EUA –, será importante evitar alinhamentos automáticos, livre de
influências ideológicas e geopolíticas. O governo brasileiro já vem sendo
confrontado com essas opções em votações nos organismos internacionais e em
gestões diplomáticas, como no caso do não fornecimento de munição para tanques
na Ucrânia e na autorização para navios de guerra iranianos entrarem em portos
nacionais. Ativismo diplomático, contudo, como a iniciativa de criar um grupo
da paz para a suspensão das hostilidades na Ucrânia, não terá êxito.
A grande maioria dos países em
desenvolvimento da África, América Latina e Ásia tem-se manifestado contra a
divisão do mundo. A exemplo da Índia, o Brasil, reconhecendo as novas
realidades mundiais, deveria manifestar formal e publicamente sua posição de
independência em relação aos dois lados, acima de ideologias ou preferências
partidárias, na defesa estrita de seus interesses políticos, econômicos e
comerciais.
Quase perfeito! O Brasil é totalmente independente e assim deverá seguir. Inclusive para fazer "ativismo diplomático", se nosso governo assim entender que deve.
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