terça-feira, 11 de abril de 2023

Carlos Andreazza - Será que concordo com Lira?

O Globo

Nunca imaginei que concordaria com Arthur Lira. Espero não me arrepender. A matéria da concordância é a proteção ao Marco Legal do Saneamento, aprovado pelo Congresso e sancionado em 2020; cujo objetivo tem décadas de atraso: universalizar a oferta de água e o esgotamento sanitário em dez anos.

A meta é ambiciosa. Não poderia ser diferente. Cem milhões de pessoas não têm rede de esgoto. São 35 milhões os sem água potável. Quase tudo vai por fazer. O Brasil precisa de intentos ousados para curto prazo. Em termos de saneamento, estamos — mesmo em algumas áreas de centros urbanos modernos — nalgum buraco entre 1930 e 1940.

Quem dera nossa vala fosse a língua de fezes que escorre pelas areias das praias — e que incorporamos como dado da paisagem. Nosso buraco é tão fundo que essa ferida em Copacabana se torna perfumaria. A nossa fossa é a que deriva de tirar a cabeça da bolha para exercício de imaginação simples: se é assim em Búzios, como será onde não se monta cartão-postal?

Falharam historicamente as empresas estaduais encarregadas de retirar cocô da frente da porta pela qual as crianças saem de casa para ir à escola. A explicação mais frequente em defesa dessas companhias — de que foram sucateadas pelo aparelhamento político-partidário — consiste na própria corroboração-constatação de inviabilidade do sistema. (Sendo os aparelhadores e seus apaniguados os que militam pela sustentação do esquema viciado gerador de doenças.)

As companhias estatais tiveram muitas chances, não menos bilhões de dinheiros, para aterrar uma das fundações, decerto entre as mais aberrantes, da desigualdade — a combinação entre água tratada inacessível e esgoto a céu aberto — e não conseguiram.

Não conseguiram. Ponto final.

O Marco do Saneamento, ao dar vez ao setor privado, cria as condições competitivas capazes de oferecer uma alternativa crível — e longe de ser solução garantida, como demonstra a operação dos trens urbanos no Rio de Janeiro. Gestão pela iniciativa privada da coisa pública — a SuperVia ensina — não é a panaceia do mundo. As iniciativas ordenadas pela Lei do Saneamento, no entanto, são saneadoras. Botam a bola no chão. A legislação é boa. Não estabelece o fim das estatais. Exige que se estruturem para concorrer. Não é excludente. É estruturante.

É o caminho; a exigência — por investimentos em infraestrutura com o condão de sanear vidas — mobilizando reações em socorro de superfícies cujas existências ora têm por fim a manutenção de milhares de boquinhas.

O novo conjunto legal expôs a incompetência mais básica das empresas estaduais de água e esgoto. Não há outra qualificação para isto: mais de 1.100 municípios, com população de cerca de 30 milhões, cujos contratos para serviços de água e esgoto são considerados irregulares porque as companhias não conseguiram comprovar meios de promover os investimentos exigidos. Algumas estatais exercitaram o desaforo de nem sequer mandar a documentação à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.

A isso, à exibição da impossibilidade de (do desdém em) enfrentar o problema dramático do saneamento no país, o governo Lula reagiu com os decretos — ilegais, por avançarem sobre prerrogativas do Parlamento — fiadores de sobrevida às empresas estaduais deficitárias. Canetadas que prorrogaram — atropelando determinação que só o Congresso poderia rever — os prazos para a comprovação da capacidade de investimento por companhias que jamais conseguiram ofertar minimamente o que lhes cabia.

O governo Lula não tem pressa em matéria de saneamento básico, uma urgência. É o que informa. Apressou-se, porém, em decretar pela permanência — na banguela — de empresas impróprias para prestar os serviços que lhes dão finalidade. O puxadinho segundo o qual companhias estaduais poderiam atender diretamente — sem licitações municipais — agrupamentos de cidades é autoevidente. A justificativa para a gambiarra obriga ou decreto legislativo ou ação ao Supremo: por meio desses ajuntamentos, descaracterizadas as unidades municipais, o estado seria considerado o titular do serviço — e cairia a necessidade de licitação.

Que tal?

O presidente da Câmara, generoso, chamou a manobra de “um absurdo”. Disse que os dois decretos impõem retrocessos. E foi explícito ao afirmar que não aceitará retrocessos.

Lira é a favor de aprimorar a legislação — mas não explicou em que consistiria esse aprimoramento. (Seria o caso de explicar também o que compreende por retrocesso; e retrocesso para quem.) É onde temo me arrepender ao lhe elogiar a disposição. Porque, se não resta dúvida de que qualquer mudança no Marco do Saneamento deve ser feita via Congresso, dúvida tampouco há de que se possa usar essa prerrogativa republicana para vender mais caro o assalto à lei.

 

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