quinta-feira, 13 de abril de 2023

Cristiano Romero - Moradores de rua

Valor Econômico

Desemprego de longo prazo e envelhecer pesam muito neste país

Reinaldo é um dos 48 mil moradores de rua de São Paulo. Antes da pandemia, 25 mil cidadãos viviam nessa situação, segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População de Rua, da UFMG. No Brasil, são 192 mil, embora André Dias, coordenador do Observatório, considere esse número subestimado - ele calcula que sejam 300 mil.

Acompanhado de nove cachorros, Reinaldo recolhe de madrugada caixas de papelão em bares e restaurantes. Durante o dia, revende-as a empresas de reciclagem. Enquanto desbasta o material antes de colocá-lo em sua carroça, cinco dos cães se deitam na calçada, alinhados. Os outros, recém-chegados, ficam presos porque ainda não foram adestrados.

 “Esses animais foram abandonados pelos donos. Eu não adoto, eles é que me adotam”, conta Reinaldo. “Os que estão com coleira precisam ser ‘acalmados’ porque ainda não entenderam o que aconteceu. São mais agressivos, mas daqui a pouco se acalmam. De vez em quando, uma alma boa se aproxima, faz carinho num deles e pede pra levar. Deixo porque sei que será bem tratado.”

Reinaldo é de Governador Valadares, cidade mineira que, ao longo das últimas três décadas do século passado, sofreu acentuado esvaziamento econômico. Milhares de seus habitantes tomaram o rumo dos EUA em busca de oportunidades. Remessas de dólares feitas às famílias se constituíram numa das principais fontes de renda do município.

“Minha vida não foi sempre assim não, doutor”, disse Reinaldo de pronto quando puxei conversa. Diferentemente de seus conterrâneos, ele se estabeleceu em São Paulo, aprendeu um ofício por meio de curso técnico e trabalhou com carteira assinada numa fábrica de tintas. O salário pagava as contas e ainda sobrava algum para ajudar a família. A sorte de Reinaldo começou a mudar quando, em março de 1990, foi lançado o Plano Collor, a “bala de prata” do então presidente Fernando Collor para conter a inflação que assolava o país desde meados da década de 1970.

Depois se viu que a bala era de festim. Fez alarido ao confiscar depósitos (à vista e a prazo, inclusive, a caderneta de poupança), quebrou empresas, empobreceu quem já era pobre, derrubou a inflação num primeiro momento, mas, logo, a carestia voltou impávida.

O Plano Collor foi o 5º a fracassar entre 1986 e 1990. Lançado em fevereiro de 1991, o Collor 2 também malogrou, alimentando nos brasileiros a sensação de que jamais conseguiríamos debelar a inflação crônica - o triunfo só veio após o lançamento do Real, em julho de 1994, mas, assim como vivandeiras da ditadura militar vêm se assanhando nos últimos anos, defensores da tese de que um “pouco” de inflação acelera o crescimento do PIB têm guarida hoje dentro do Palácio do Planalto.

Atingida pela crise de liquidez e a profunda recessão provocadas pelo Collor 1, a fábrica de tintas onde Reinaldo trabalhava em 1990 fechou as portas. No início, ele acreditou que, rapidamente, conseguiria nova colocação numa empresa concorrente. No entanto, constatou que a quebradeira não se limitou ao negócio de seu empregador. Depois de alguns meses vivendo do dinheiro que economizara pensando no dia em que traria mulher e filhos para São Paulo, a poupança de Reinaldo evaporou e ele se viu obrigado a morar de favor na casa de amigos.

Reinaldo percebeu que o tempo, implacável, em vez de lhe somar minutos, horas, dias, semanas, meses de vida, passou a subtraí-los. Sem renda, não teve mais como ajudar a família, como fazia desde que chegara a São Paulo. Ato contínuo, começou a reduzir contatos com parentes e, desenganado, optou num dado momento por não dar mais notícia. “Por vergonha, doutor.”

Na procura por ocupação, Reinaldo descobriu que, no Brasil, ficar desempregado por "muito" tempo e envelhecer são desvantagens que pesam sobremaneira. Contava apenas 30 anos. “Doutor, para as empresas eu já estava velho e desatualizado.” Em 1994, tomou decisão drástica - viver nas ruas de São Paulo. “Não podia mais morar na casa dos outros, doutor.”

Perguntei a Reinaldo se recebia o BPC (Benefício de Prestação Continuada), pago pelo INSS a cidadãos em situação como a dele e a portadores de deficiência física que os impedem de trabalhar. "BP o quê, doutor?", reagiu Reinaldo. Contei-lhe que o BPC foi criado pela Constituição de 1988 e que o benefício mensal é equivalente a um salário mínimo. Muito mais realista do que o interlocutor, indagou: “Qual é a idade mínima para ter esse negócio aí?”.

Até aquele momento da prosa, presumi que as rugas que dividem o rosto de Reinaldo em sulcos profundos e as manchas em alto contraste que fazem sua pele parecer o mapa de um país, além da cabeça povoada por fios brancos, indicassem ciclo igual ou acima de 65 anos (idade mínima exigida pelo BPC). “Doutooooor, eu tenho 54.”

Reinaldo parecia caçoar de sua falta de sorte. Qual nada! Aquele era o riso envergonhado de uma pessoa acostumada a lidar com os desígnios de uma vida cujo direito à felicidade foi suprimido, ainda na juventude, por decisões tomadas dentro de gabinetes confortáveis e bem refrigerados em Brasília.

Despedida

Concluo com esta coluna ciclo profissional de 23 anos no Valor Econômico, período que coincide com o da história do jornal, que começou a circular no dia 2 de maio de 2000. Muitos dizem que despedida é sinônimo de tristeza. Sim, a falta de colegas e amigos que fiz nesta fascinante casa de notícias já está presente, ainda bem - a mim é inconcebível que alguém não faça uso de sentimento tão nobre, ao qual a língua de Camões, de maneira única, chama de saudade.

Despedir-se neste momento é, para mim, olhar para frente porque, neste matutino, tive o privilégio de exercer missões entre as mais nobres com as quais um jornalista pode sonhar. Pelo Valor, morei em três cidades (Washington, Brasília e São Paulo), e viajei a seis continentes. Convidado pelo maior entre todos nós - Celso Pinto (in memoriam) -, iniciei a longa trajetória no Valor como correspondente em Washington. No retorno ao Brasil, fui repórter especial e colunista de Política (de junho de 2003 a maio de 2005) em Brasília. Depois, fui repórter especial e colunista de Brasil. Em 2009, fui promovido a editor-executivo, função que exerci de agosto de 2009 a janeiro de 2021. Em fevereiro daquele ano, tornei-me diretor-adjunto de redação, cargo que ocupei até julho de 2022. Desde então, atuei como colunista de política e economia.

Nesta hora, faço questão de agradecer imensamente ao Celso, por meio de sua família - Célia de Gouvêa Franco (colega e amiga desta jornada no Valor), Pedro e Luís - pela oportunidade extraordinária de integrar a primeira equipe desta experiência jornalística única. Agradeço também a João Roberto Marinho, Otavio Frias Filho (in memoriam) e Maria Cristina Frias a confiança concedida a mim para exercer as funções mencionadas.

 

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