sexta-feira, 7 de abril de 2023

José de Souza Martins* - O pai da Mônica e a Academia

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

A ABL tem o desafio de reconhecer a legitimidade dos quadrinhos como campo literário

Mauricio de Sousa, o pai da Mônica, candidatou-se a uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras. O assunto passaria batido, como se diz, não fosse um outro presumível candidato ter se manifestado com a afirmação: “Mauricio de Sousa não tem o que acrescentar à ABL, eu tenho”.

Mauricio de Sousa é internacionalmente reconhecido como o maior formador de leitores no Brasil. Várias gerações adquiriram o hábito da leitura nas histórias da “Turma da Mônica”. Recentemente, ele recebeu homenagem da Unesco justamente por isso.

A qualificação de um autor está não só na sua competência de escrever, mas também na sua competência de ser reconhecido como autor indispensável. Milhões de brasileiros foram e são leitores de sua obra. Ele é o grande porta-voz literário e artístico da simplicidade, do propriamente humano.

Os quadrinhos têm, no Brasil, mais que centenária tradição na difusão do hábito de ler. Escritores foram lidos através deles. Uma das nossas mais antigas e emblemáticas publicações, “O Tico-Tico”, surgiu em 1905 e foi editada até 1961. Em cores e em preto e branco, os quadrinhos antecipavam a iniciação à leitura. Criavam uma cultura baseada no pressuposto do ler e imaginar, de ver o que era lido.

Nascia um tipo de literatura de que Mauricio de Sousa é hoje o mais destacado continuador. Ele é, também, continuador da obra de Monteiro Lobato, nascido no mesmo Vale do Paraíba em que ele nasceu.

Sou da geração que lia “O Tico-Tico”, “Vida Infantil” e “Vida Juvenil”, nos anos 1940. Esta última combinava quadrinhos e textos literários. Em casa, passei dessas “revistinhas” para os folhetins que minha mãe assinara e guardara. E, na sequência, tornei-me assinante do Clube do Livro, de Mário Graciotti, da Academia Paulista de Letras.

Ainda guardo alguns desses livros, de Afonso Schmidt, também da Academia. Ele lutava com dificuldade para sobreviver. Graciotti convidou-o para escrever um livro por ano, para o mês de janeiro. Um jeito do integralista, de direita, ajudar o amigo e confrade anarquista, de esquerda.

Sou da geração que seguiu o itinerário dos quadrinhos para os livros, da leitura para a autoria. Em minha família, minha mulher e eu, minhas filhas e meus genros percorremos esse caminho. Hoje somos seis autores na família, com livros publicados em diferentes campos do conhecimento. Minha filha mais velha e meu genro estudaram no Instituto de Geociências da USP, onde fizeram o curso e onde defenderam suas teses.

O personagem simbólico da escola é o Brucutu, personagem de tiras de jornal, um humano impropriamente situado em tempos pré-históricos. O Brucutu não tolheu competências no instituto de que é herói simbólico.

Numa época de quadrinhos americanos, de humanos minimizados pela animalização da imagem, o surgimento de Mauricio de Sousa como autor de quadrinhos, com histórias de humanos e de sua humanização, foi uma lufada de ar fresco no mundo das novas gerações. Ele libertou a concepção de personagem de histórias em quadrinhos da triste condição de reféns do imaginário da coisificação dos seres humanos.

Tenho um netinho de 1 ano e meio. Minha filha e meu genro lhe leem histórias desde que nasceu. As histórias de Mauricio de Souza entraram no currículo dele bem cedo. Ele conhece os personagens e os nomes, que abrevia na linguagem balbuciada própria da idade.

Mauricio carrega no bolso cartões com as figuras dos seus personagens, que distribui às crianças e aos adultos que têm filhos e netos. Na Academia Paulista de Letras, premia os confrades com eles. Meu neto conhece o Ício (Mauricio), a Môni (Mônica), o Ácio (Horário), o Bebeto (Chico Bento). Ainda nesta semana eu o vi com o cartão do Ício, que ele sabe ser o pai da Mônica, numa das mãos, e o da Môni na outra. Ício fingindo contar história para a filha numa linguagem que só eles sabem qual é.

Meu neto pega um dos livros das histórias do Mauricio e “o lê” para o seu cachorrinho. Depois, mostra o livro para o cãozinho e pede que lhe conte a história. Em face do silêncio, pede a minha filha: “Mamãe, lê”.

Mauricio de Sousa não brinca com o imaginário passivo de enquadramento de crianças e adolescentes. O centro de sua obra literária é fazer dos que estão chegando ao mundo sujeitos ativos da imaginação, ou seja da invenção e da criação de história e da vida.

O menosprezo pela candidatura de Mauricio de Sousa a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras desencadeou uma avalanche de cartas aos jornais de reconhecimento de sua obra. Um desafio a que a ABL, como já o fez a Academia Paulista de Letras, reconheça a legitimidade do campo literário de que ele é o nosso mais criativo e inspirado autor.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

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