quarta-feira, 5 de abril de 2023

Margareth Menezes, analisa os 100 dias de recriação do MinC

Maria Fortuna / O Globo

Em entrevista exclusiva, ministra da Cultura conta que encontrou mais de 1.000 projetos engavetados ao assumir a pasta, anuncia prêmio literário de R$ 2 milhões, fala sobre relação com Janja, explica dívidas na Justiça e rebate críticas que recebeu ao ser indicada

O aparelho de som ainda não chegou de Salvador, mas o violão e as plantas espalhadas vão dando à baiana Margareth Menezes a sensação de que, finalmente, está em casa em Brasília. A ministra da Cultura assumiu o cargo há três meses, mas só agora conseguiu se instalar no apartamento funcional. À medida que dá seus toques pessoais ao ambiente, sente-se mais adaptada.

Quando tomou posse, ela levou logo de cara um choque de realidade que já anunciava o tamanho do desmonte sofrido pelo setor nos últimos anos. Deparou-se com 1.946 projetos engavetados desde 2021. Todos com parecer favorável para captação de recursos pelas leis de incentivo, com patrocínio garantido, aguardando apenas uma canetada final para saírem do papel. Cravar ali o seu jamegão foi a primeira ação da ministra.

No último dia 23, Margareth assinou, ao lado do presidente Lula, novo decreto que regulamenta o fomento cultural no país. Nesta quarta-feira (4), lança o edital Carolina Maria de Jesus (com a presença da filha e da neta da escritora), que vai contemplar 40 escritoras mulheres com R$ 50 mil cada. Mas foi um ato emblemático, realizado na semana passada, que mexeu com as emoções da ministra: a instalação do letreiro do Ministério da Cultura.

— Foi um simbolismo grande porque é a confirmação do renascimento do MinC. Do resgate da afirmação da democracia, após desmonte de políticas públicas pelo viés da perseguição e da criminalização num país em que sete milhões de trabalhadores e trabalhadoras da cultura foram relegados ao nada — desabafa. — Temos aqui um corpo de pessoas, gestores e servidores, lutando muito para reformular todas as coisas depois de tudo que passaram. É preciso entender que cultura é a primeira ferramenta de ascensão social do povo. E que onde existe ação cultural e letramento, existe combate à violência.

Ao ter seu nome anunciado para a pasta, em 2022, Margareth sofreu resistência de alguns gestores culturais e de uma ala do PT. Era gente que defendia alguém mais “técnico” para o cargo e questionava a capacidade da artista, criticando a falta de um passado sólido de gestora. Também diziam que ela fora escolhida apenas por ser amiga de Janja. Em meio aos ataques, artistas, escritores e ativistas saíram em defesa da cantora, que há 30 anos cuida da própria carreira, reforçando suas habilidades e trajetória.

Nesta entrevista exclusiva, realizada por um aplicativo de reunião, Margareth rebate críticas, analisa os cem primeiros dias de recriação do MinC, fala sobre os limites éticos para conciliar o cargo e a carreira artística e dá sua versão sobre dívidas com a Justiça.

CULTURA POR MARGARETH

"É a alma de um povo, por onde circula o sangue do corpo Brasil. Num país que tem essa dimensão e diversidade de influências e etnias é um legado imenso, com suas diferenças e interseções. É a linha que nos liga. A cultura do Brasil é um grande tesouro, uma mina de ouro. E sempre foi uma estação de representatividade muito forte".

POR QUE MINISTÉRIO E NÃO SECRETARIA?

"O Ministério é formado por seis secretarias, órgãos vinculados que têm a função de cuidar da Cultura. Não dá para relegar tudo isso a uma secretaria. Precisamos respeitar a dimensão do nosso fazer cultural. São vários assuntos compartimentados com uma dimensão enorme. É necessário investir nesse escopo de Ministério para que a cultura progrida. Adotar políticas públicas que cheguem em todas as áreas e em todas as manifestações culturais, desde o patrimônio material e imaterial até desdobramentos como a cultura digital e urbana. Cada setor requer o tratamento específico para ser potencializado e se tornar vetor econômico do Brasil".

ORÇAMENTO RECORDE

Esse investimento (R$ 10 bilhões em 2023vem da ideia do presidente Lula de a cultura ser ferramenta de ascensão social e econômica. Ainda mais num momento em que o país está precisando de emprego. O retorno em relação ao PIB é maior que o da indústria automotiva, de acordo com pesquisa que será divulgada. A experiência de incluir aporte de financiamento na cultura foi vivida por outros países que passaram por fortes crises econômicas. Nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra, foi a partir do cinema.

Outra pesquisa, americana, mostra que a cultura brasileira é a 13ª que mais influencia outros países. Já foi a 7ª. Isso sem a gente fazer o investimento adequado. É bom dizer que a dimensão desse orçamento é a de um ministério que ficou destruído por quatro anos. É preciso reposicioná-lo e, para reconstruí-lo e formatá-lo, é preciso verba. Teremos representação em todos os estados, comitês de cultura funcionarão como braços do MinC para auxiliar na execução das políticas públicas e ouvir a sociedade. Falam em orçamento gigante, mas ele é paulatino, não é algo que está aqui, na mão. Tem as execuções previstas de acordo com suas funções".

CEM DIAS DE RECRIAÇÃO DO MINC

“O saldo é positivo. Nem existia ministério... Só de reconstruir uma arquitetura dessas... Destravamos 1.946 projetos aprovados pela Lei Rouanet, que somavam quase R$ 1 bilhão em recursos. Fizemos o novo decreto, desenrolamos a Lei Aldir Blanc 2. Uma verba de R$ 450 milhões destinada à Ancine também estava travada. (Em fevereiro, Margareth anunciou a publicação dos resultados dos editais de cinema que deram início à contratação de 250 projetos cinematográficos. Ao todo, o setor audiovisual receberá investimento de R$ 1 bilhão, garante o MinC).

LEIS DE FOMENTO

“A Lei Aldir Blanc 2 nos dá orçamento anual obrigatório de R$ 3 bilhões para políticas públicas culturais, que serão repassados a estados e municípios de 2024 a 2028. Um grupo de trabalho atua no documento da Lei Paulo Gustavo, que será regulamentada até maio. Prevê R$ 2,7 bilhões para o audiovisual (fora a verba já citada acima) e R$ 1,065 bilhões para as demais áreas. Essa lei seria executada por duas vezes, e o governo Bolsonaro travou. Muitas pessoas perderam seus postos de trabalho, instrumentos... Estúdios e cinemas fecharam. Tem coisa que até hoje não se recuperou".

DESCENTRALIZAÇÃO DE VERBAS

“O novo decreto que regulamenta mudanças na lei que define as principais políticas públicas do país, como Lei Rouanet, Paulo Gustavo e Aldir Blanc, prevê a ampliação do leque de distribuição de verbas de fomento para as regiões Nordeste, Norte, Centro-Oeste. O ministro Gilberto Gil já criticava as desigualdades na Rouanet, tanto regional como racial. Houve a experiência exitosa com a Lei Aldir Blanc 1 na pandemia. E isso sem o ministério... Agora, estamos trazendo essa ferramenta usada pelo setor cultural para o novo decreto.

O ministério também entra oferecendo uma diretoria, já instalada, para assessorar prefeituras. Existe diálogo com patrocinadores para a conscientização tanto sobre a descentralização como em relação à diversidade. Estamos trazendo de volta a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, que tinha sido desligada do processo de avaliação. O novo decreto prevê que o Ministério pode indicar projetos para as empresas. Desta forma, seremos os maiores fiscais da descentralização.

Também faremos uma unificação dos trâmites das leis de fomento via Instrução Normativa, um marco regulatório para que haja uma harmonização dos procedimentos de todas elas. Isso facilita tanto para o Ministério como para os agentes culturais. Teremos olhar especial para a região Norte, riquíssima e sempre excluída por ter configuração diferente por causa do custo amazônico. Agora, com o Ministério dos Povos Indígenas, começa a haver uma compreensão maior da importância dessa cultura essencial para a identidade nacional e vamos contemplá-la. Através da cultura, podemos buscar interface com o meio ambiente e a educação, trazer de volta cursos de arte para as escolas e auxiliar a nova geração a entender mais sobre a cultura do nosso povo brasileiro, a diversidade, a cultura afrobrasileira".

SECRETARIADO

"Estou sendo auxiliada por Márcio Tavares, secretário-executivo, que é jovem talento na política e no conhecimento também. Trouxemos quadros de competência. Henilton Menezes (Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural, que estava presente nesta entrevista) é uma sumidade no assunto do Fomento. Estamos trabalhando com pessoas que entendem dos assuntos. Em anos de ministério, as políticas criadas aqui foram pensadas por gestores culturais, que fizeram coisas com substância. Houve pesquisas, foram anos de documentações e ações práticas feitas nos governos Lula, com Juca Ferreira, Gilberto Gil. A diversidade do Brasil tinha sido mapeada e estava no terceiro processo quando foi estancada. Estamos retomando os pontos de cultura e vamos ampliá-los para dar apoio a todas essas nossas ações".

Margareth também trouxe de volta Marcos Souza à Secretaria de Direitos Autorais e Intelectuais do MinC. Ele integrou o Ministério em governos anteriores. Fabiano Piúba, secretário de Formação Cultural, Livro e Leitura, também acompanhava a ministra nesta entrevista.

EDITAIS

“Serão selecionadas 40 obras escritas por mulheres. Cada uma receberá R$ 50 mil. É o maior prêmio literário do país em valor absoluto: R$ 2 milhões — 20% deverão ser obras de mulheres negras, 10% indígenas, 10 % com deficiência, 5% ciganas, 5% quilombolas. Quando se cria esses percentuais, e estamos fazendo isso no decreto também, possibilita-se o acesso a oportunidades. Premiaremos contos, crônicas, poesias, quadrinhos, romance, roteiro de teatro inéditos e redigidos em português.

O Banco do Brasil lançou edital de R$ 150 milhões para projetos dos CCBBs de Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. O Banco do Nordeste lançou outro no valor de R$ 10 milhões só para iniciativas daquela região”. Além das ações indicadas pela ministra, o Brasil é convidado de honra da 7º edição do Mercado de Indústrias Criativas Argentinas (Mica) 2023, e o MinC abriu edital para levar 90 empreendedores culturais ao evento, num investimento de R$ 800 mil.

CARREIRA ARTÍSTICA X CARGO PÚBLICO

"Ficamos dois anos com projetos de carnaval parados por conta da pandemia. Esse era para ser um dos meus verões com mais trabalho. Abri mão de 90% dos meus compromissos porque fui empossada como ministra e algumas coisas tinham patrocínio. Cumpri outros que já tinham sido programados antes do ministério.

É impossível viver sem esse trabalho. Há pessoas em todos os ministérios que são advogados, médicos e cumprem compromissos em suas profissões quando é possível. Claro que observando os limites dessas ações. Consultarei sempre a Comissão de Ética. Sou artista, tenho 37 anos de carreira que construí com meu suor. Havendo oportunidade adequada e com todos os cuidados possíveis, estarei. Não dá para viver sem cantar. Até porque, são quatro anos de ministério e eu tenho minha carreira pela frente. Talvez, no ano que vem, eu vá fazer uma puxada de trio ("a gente faz uma vaquinha", brinca a assessora, que acompanhava a entrevista).

ATAQUES E CAPACIDADE QUESTIONADA

"Sofri perseguição. É uma prática que acontece porque é chocante uma mulher negra em lugar de poder. Tenho amigas executivas, lideranças negras que sentem isso na pele. Em nosso país, racismo e misoginia são normatizados. Essa prática maldosa faz parte dos que não querem a democracia, dos que perseguem legados e direitos. Recebi apoio e foi importante. Venho da iniciativa civil, sou artista e aprendi a fazer tudo na dificuldade. Passei perrengues e cometi muito erros. Aprendi e tenho muita ajuda. Minha maneira de me relacionar com a vida é fraterna. Sou educada, trato bem as pessoas. Fico chocada com o comportamento repugnante e antidemocrático de alguns agentes públicos”.

JANJA E LULA

"Janja é uma pessoa afável, aberta à comunicação. Figura sensível, mulher moderna que se compromete e acredita no Brasil. Sempre fortalece a Cultura com suas atitudes, está presente em todas as ações legais do ministério. Quando houve os ataques, ela me telefonou e disse: 'Não liga para isso, segue em frente'. É muito bom ter esse feedback. É uma primeira-dama de ação, e isso é bom para a mulher, para a representação feminina. Precisamos fortalecer a presença feminina no Congresso. É enorme a contribuição que podemos dar no sentido de desenvolvimento e de mudança na forma de fazer as coisas na administração pública. Janja representa a mulher de peito, que quer participar.

O presidente Lula compôs seu Ministério de 11 mulheres em posições estratégicas e tem esse olhar na luta contra o feminicídio. Acho que é a primeira vez que a mulher brasileira está vendo esse acolhimento de um governo federal. Como mulher negra, tenho que reconhecer a oportunidade que estou tendo, porque sabemos como a vida é dura para a gente. Vou fazer tudo para que dê certo".

DÍVIDAS COM A JUSTIÇA

TCU detectou irregularidades num convênio assinado, em 2010, entre a Associação Fábrica Cultural, fundada por Margareth, e o MinC. Eram problemas como prestação de contas e pagamentos por serviços não realizados. Em 2020, o TCU condenou a organização a devolver R$ 338 mil ao governo. “Se eu tivesse dívida com o TCU, não teria certidão negativa para exercer o cargo de ministra. A situação aconteceu há 15 anos e não tenho ligação direta com o caso. Jamais sofri qualquer condenação por parte do TCU”, respondeu a ministra quando questionada sobre o caso. Ao GLOBO, o TCU informou não ter havido novos desdobramentos do processo.

Assim que o nome de Margareth foi anunciado, também veio à tona a dívida de R$1,1 milhão da cantora com a Receita Federal, valor que seria referente a impostos não recolhidos por empresas responsáveis pela produção de espetáculos e discos da artista. Margareth alega que as empresas tiveram dívidas acentuadas na pandemia, mas que, com a volta das atividades, os processos de regularização foram retomados em 2022 e as dívidas (que ela nega que sejam nesse valor) estão sendo pagas. Procurada pelo GLOBO, a Receita Federal afirmou que, em razão do sigilo fiscal, não se manifesta sobre situações de contribuintes.

SERTANEJOS BOLSONARISTAS

“O MinC está aberto a todos os sertanejos. Não estamos aqui para perseguir nenhuma manifestação cultural. Respeitamos a democracia, as diferenças. O que não é possível é aceitar racismo, fascismo, nazismo. Mas, quanto às pessoas serem de esquerda ou de direita, é isso aí. E tem sertanejo dos dois lados".

FUNDAÇÃO PALMARES

"Resgatar a Palmares da destruição é importante. É a primeira conquista do povo negro brasileiro no sentido de ter um núcleo que trate da memória e realize ações dentro do Estado dirigida a essa reparação. Tudo isso foi destruído com o discurso absolutamente racista. Precisamos entender que esse legado tem um valor na construção da identidade nacional que compreende mais de 50% da população brasileira".

MARIO FRIAS NA VICE-PRESIDÊNCIA DA COMISSÃO DA CULTURA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

"São coisas do Brasil, infelizmente. Não estou interessada nesses assuntos menores. Nossa visão é maior, de compreensão do valor da cultura do Brasil. Não estamos aqui para perseguir ninguém, nem criar algum tipo de ideologia".

PATRIMÔNIO

"O presidente do IPHAN tem retomado obras paradas. Estamos entrando seriamente na reforma do Palácio Capanema, a intenção é entregá-lo até o fim do ano. Faremos bom uso desse lugar maravilhoso. E existem tantos outros, como a Fundação Rui Barbosa, a Biblioteca Nacional... Estamos remodelando tudo. Patrimônio também é grande fonte econômica que podemos ativar. Muitos países exploram bem esse legado. A gente vai para a Europa e vê grandes construções como memórias culturais. O que aconteceu em Brasília em 8 de janeiro (a invasão ao Congresso) foi assombroso, uma tentativa de golpe com fúria violenta destinada ao patrimônio cultural do Brasil. Destruíram tesouros da História do Brasil. Não entendem o valor disso. Queremos fortalecê-los de todas as maneiras possíveis, como se faz na Europa. A gente não paga para entrar no Louvre? Tenho pensado em contrapartidas mais positivas para o nosso patrimônio material e imaterial também".

MISSÃO

"Nossa meta é deixar o ministério funcionando bem, com as políticas públicas acontecendo. Quando o presidente Lula me convidou, disse que queria o MinC para a cultura do Brasil se potencializar como vetor econômico. Quando isso começar a funcionar não vai ser mais tão necessário tantas ações de financiamento. A máquina se alimenta. O retorno econômico em lugares onde acontecem feiras e festas é fantástico. Basta ver o carnaval. Esse último, mesmo sendo o primeiro pós-pandemia, com poucas políticas públicas e sem ação do Ministério, foi um acontecimento. A cultura tem potencial incrível. E estou apostando nisso. Ficarei feliz se conseguirmos deixar esse organismo sadio".

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