domingo, 23 de abril de 2023

Míriam Leitão - A nova luta da verdade

O Globo

Os acertos do governo Lula na reação aos ataques contra a democracia evitaram o pior. Mas seus erros o colocaram na defensiva

O Brasil, a democracia, e o governo Lula foram vítimas no episódio de 8 de janeiro. Essa é a única verdade factual, histórica mas, por incrível que pareça, o governo está se deixando ficar na defensiva, pela série de erros estratégicos que cometeu. Não deveria ter colocado as imagens em sigilo, deveria ter analisado todas essas cenas com rapidez, para entender o comportamento de cada um dos servidores e não ser surpreendido, como foi na semana passada. Deveria ter feito uma imediata e completa mudança no Gabinete de Segurança Institucional, um dos centros mais ativos da conspiração antidemocrática. Por isso, faz bem o ministro Alexandre de Moraes de determinar o fim do inexplicável sigilo das imagens.

O que houve no dia 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe de estado. Isso é inequívoco. Ninguém deveria ter que escrever isso novamente como faço agora. Imagina o que teria acontecido se o presidente Lula não tivesse voltado imediatamente para Brasília, se não tivesse mobilizado todos os poderes e a federação em torno da defesa da democracia? Imagina se os golpistas tivessem conseguido provocar um efeito contágio em outras capitais? Tudo ficou extremamente frágil naquelas horas tensas do 8 de janeiro.

Um governo, ao fim da sua primeira semana, ainda comemorando os ecos da festa da posse, foi atacado por vândalos que haviam sido açulados pelo ex-presidente durante quatro anos e cevados na frente de quartéis do Exército. Criminosos atacaram todos os símbolos do poder da República, com sanha demolidora. Imagina se Lula tivesse aceitado a proposta de assinar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem? Passaria a ser uma sombra em seu próprio governo, tutelado pelos militares.

Não foi trivial o que aconteceu. É inacreditável que o partido que abriga o ex-presidente se atreva a querer inverter o ônus da prova e sustentar a versão delirante de que a culpa é da vítima e de que é o governo Lula que tem que se explicar. Bolsonaro conspirou à luz do dia. Todos viram. Atacou o Judiciário, mentiu sobre o processo eleitoral, incutiu versões mirabolantes na cabeça de seus seguidores. Ele, o ex-presidente, estimulou golpistas a atacar o Judiciário, convocou manifestações, em que eram feitos pedidos de “intervenção militar com Bolsonaro” e de “volta do AI-5”. Aos comandos militares ordenou a comemoração do 31 de março, escolheu militares leais a ele e não à Constituição. O GSI era gerido pelo general Augusto Heleno que chegou a lamentar em rede social o fato de Lula estar bem de saúde.

Foi a soma dos acertos do governo Lula que evitou o pior. Mas os erros cometidos desde então o colocaram na kafkiana situação em que está agora. O que as imagens divulgadas pela CNN mostraram é o general Gonçalves Dias completamente inerte diante de pessoas que estavam cometendo crime dentro do Palácio presidencial. Ele e outros integrantes do GSI poderiam ter dado ordem de prisão àquelas pessoas, em vez de água, ou orientações sobre a rota de saída. Na interpretação mais generosa, esses militares do GSI foram incompetentes.

Os bolsonaristas nada têm a perder. Tudo o que podiam fazer diante daqueles eventos tóxicos e comprometedores é tentar reduzir o dano. De uma forma ou de outra eles foram coniventes com os crimes. Por este motivo, os parlamentares da extrema direita usaram a velhíssima tese de que a melhor defesa é o ataque. O problema não é o que eles fazem para tentar escapar, mas o que o governo Lula não fez.

O que se dizia internamente é que uma CPI sempre atrapalha a tramitação de matérias importantes e que o assunto já estava sendo investigado pela Polícia Federal e pelo Judiciário. O fato de o governo ter sido surpreendido pelas imagens do general Gonçalves Dias perambulando entre manifestantes mostra que a investigação tinha falhas, e o material disponível não estava sendo avaliado com olhares atentos e críticos.

O governo precisa reagir, mostrar competência política para fazer a verdade prevalecer na CPI e, ao mesmo tempo, negociar a tramitação das matérias importantes para o projeto da administração como, por exemplo, o arcabouço fiscal. A luta do 8 de janeiro não terminou. Os que cometeram crimes, ou se acumpliciaram com os criminosos, querem mudar a História. Se a mentira prevalecer sobre o que foi aquele momento, não é o governo que ficará mal, é a democracia que correrá riscos mais uma vez.

 

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