Lei das Estatais ainda continua sob ameaça
O Globo
Ministros do Supremo deveriam derrubar
liminar que enfraqueceu regras para facilitar vida dos políticos
Em dezembro, a Câmara dos Deputados, numa
votação acompanhada de perto pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL),
modificou a Lei 13.303 de 2016, conhecida como Lei das Estatais, para facilitar
a nomeação de políticos nas empresas públicas. Era a primeira manobra para
ajudar o futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva a ter cargos a oferecer
nas negociações para construir sua base parlamentar no Congresso. Não parou por
aí.
No final daquele mês, diante da resistência
do Senado para recolocar as estatais no tabuleiro do jogo político, o PCdoB,
partido aliado do PT, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI) contra dispositivos da lei que apenas repetem
normas adotadas em empresas privadas quando contratam executivos para o alto
escalão.
A Lei das Estatais exige formação acadêmica compatível com o posto, dez anos de experiência na área de atuação da estatal (ou quatro em cargos de “chefia superior” em empresa de porte na área da estatal) e impõe quarentena de três anos para quem atuou na liderança de partidos ou de campanha eleitoral. O governo temia pelas nomeações de Aloizio Mercadante para o BNDES e do então senador Jean Paul Prates (PT-RN) para a Petrobras. O argumento de que Mercadante coordenou a campanha de Lula sem remuneração foi aceito pelo Tribunal de Contas da União (TCU), e Prates renunciou ao mandato.
A ação entrou em julgamento no plenário
virtual do STF, sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, em 10 de
março. Logo recebeu pedido de vista do ministro André Mendonça. Tudo aconteceu
então em alta velocidade. O PCdoB, alegando que empresas públicas têm prazos a
cumprir nas nomeações, pediu medida cautelar ao relator. Lewandowski concedeu
liminar anulando a parte sensível da Lei das Estatais — em particular a
quarentena de três anos —, sob o argumento de que ela contém
inconstitucionalidades. A decisão dele flexibilizando a lei foi posta ontem em
votação no plenário virtual, mas o ministro Dias Toffoli novamente pediu vista.
Com isso, por ora está mantida a decisão de Lewandowski.
Promulgada no governo Michel Temer, a Lei
das Estatais foi redigida sob a inspiração das descobertas feitas pela Operação
Lava-Jato acerca do relacionamento promíscuo entre empreiteiras, políticos e a
Petrobras. O resultado foram regras e critérios para a escolha de dirigentes e
conselheiros de estatais coerentes com o dever dos governos de defender a
lisura no uso do dinheiro do contribuinte e compatíveis com a legislação mais
moderna de combate à corrupção.
As evidências de que a lei funcionou para
barrar ilegalidades são abundantes, mas apenas uma basta para entender a
transformação que ela representou nas relações das estatais com o universo da
política. A Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, do
Ministério do Planejamento, criou um indicador para medir a qualidade da
governança das empresas públicas. Em 2017, elas tinham nota média de 4,15. Em
2022, deram um salto para 8,07. Os ministros do Supremo deveriam prestar
atenção a esse tipo de dado, derrubar a liminar de Lewandowski e restaurar a
Lei das Estatais na íntegra.
Fragilidade jurídica da denúncia contra
Trump terá efeito político
O Globo
Com chance de fracassar no tribunal,
acusação é pretexto para que, na campanha, ele alegue ser perseguido
Donald Trump é o primeiro presidente
americano a se tornar réu, no caso envolvendo a atriz pornô Stormy Daniels. O
mais surpreendente é ter demorado tanto. Trump nunca demonstrou apreço pela lei
e governou como se estivesse fora de seu alcance. É alvo de várias
investigações. É uma lástima que justamente a conduzida em Nova York tenha sido
a primeira a originar um processo criminal. Há muitas dúvidas sobre a
sustentação jurídica do caso para chegar a uma condenação.
Pré-candidato republicano nas eleições do
ano que vem, Trump explora o caso para incendiar a sua base eleitoral. Para
ele, a decisão tem motivação política. O promotor à frente do processo, Alvin
Bragg, é democrata, mas a decisão foi referendada por júri popular. Nos
próximos dias, Trump deverá comparecer a um tribunal de Manhattan para
registrar suas digitais, ser fotografado e talvez algemado (embora seja
provável que escape desse constrangimento).
O teor da denúncia ainda não foi divulgado
oficialmente. Segundo informações da imprensa americana, Trump é acusado de
fraude e de violar regras eleitorais por ter escondido pagamentos feitos a
Stormy Daniels antes das eleições de 2016, para que ela ficasse quieta a
respeito de um antigo caso amoroso com ele. O advogado de Trump na época,
Michael Cohen, fez um contrato sem esclarecer as motivações e pagou US$ 130 mil
a Daniels, dinheiro ressarcido por Trump depois das eleições. Pela lei de Nova
York, falsificar ou fraudar contratos é uma contravenção.
Na visão de Bragg, Trump cometeu um crime
mais grave, previsto na legislação federal. Baseado na tese de que o silêncio
de Daniels beneficiou sua candidatura à Presidência, Bragg argumenta que o
dinheiro foi uma doação ilegal de campanha. Somente uma condenação por esse
crime levaria Trump à prisão. Mas nunca a lei estadual de Nova York foi usada
para dar sustentação a uma acusação de violar regras eleitorais federais. A
chance de a denúncia naufragar na Justiça é considerável.
Trump também é alvo de uma investigação
sobre esforços para fraudar os resultados da última eleição na Geórgia. Pode
ser denunciado noutra sobre a tentativa de atrapalhar a transferência de poder
a Joe Biden. A posse de documentos secretos depois da saída da Casa Branca
também está em apuração. Noutra frente, procuradores processam Trump por ter
inflado o valor de bens de sua empresa.
Apesar da fartura de evidências em alguns casos, é possível que ele escape de condenação, pelo menos até a eleição de 2024. Depois de tudo o que fez contra a democracia americana, seria irônico se o processo de Nova York servisse para pavimentar sua volta à Casa Branca.
Dúvidas fiscais
Folha de S. Paulo
Mérito de Haddad, proposta dá racionalidade
ao debate, mas ainda gera ceticismo
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
enfim divulgou as linhas gerais de sua proposta de regra fiscal para substituir
o hoje desfigurado teto constitucional de gastos. A providência, louvável,
ainda dá margem a dúvidas consideráveis.
De melhor, o ministro Fernando Haddad, da
Fazenda, foi bem-sucedido em obter de Lula compromisso formal com uma
legislação destinada a conter a escalada da dívida pública, ainda a ser
apreciada pelo Congresso Nacional.
Dissipam-se, ao menos por ora, discursos
vazios contra a austeridade orçamentária e especulações em torno de teses
econômicas exóticas. O debate já pode se dar a partir de bases mais racionais.
A esse respeito, o foco da gestão petista
se assenta sobretudo no aumento das receitas para restaurar superávits. Com
hipóteses otimistas e risco de que a execução se mostre insuficiente, a proposta
foi recebida com reservas por grande parte dos especialistas.
A regra da Fazenda se alicerça em duas
restrições. A primeira delas busca limitar o crescimento da despesa a um ritmo menor
(70%, como regra geral) que o da receita efetiva. A isso se soma um intervalo
—de 0,6%, no mínimo, a 2,5%, no máximo— para a variação dos gastos anuais acima
da inflação.
Vale dizer: mesmo que a receita não cresça,
haverá o aumento da despesa pelo menor percentual.
Argumenta-se que assim será atenuada uma
tendência pró-cíclica do Orçamento, ou seja, de cortes dolorosos nos momentos
recessivos. Certo é que o gasto seguirá crescendo todos os anos.
A segunda restrição é uma meta de superávit
primário (receitas menos despesas, fora juros), que será crescente entre 2023 e
2026: de um déficit de 0,5% do PIB neste ano até um saldo positivo de 1% ao
final do período. Haverá ainda uma banda de 0,25 ponto percentual em torno
dessas cifras.
Haverá um ajuste no gasto se o saldo ficar
abaixo da meta. Nessa hipótese, a alta do desembolso não poderá superar 50% do
crescimento da arrecadação.
O mérito da proposta, repita-se, é fixar
referências para o debate, felizmente numa trajetória de restauração da
poupança pública. Este é o fato político mais importante.
É inegável, porém, que o cumprimento
das metas depende de muito mais arrecadação, o que Haddad promete
buscar com medidas incertas —e que renderiam improváveis R$ 100 bilhões a R$
150 bilhões.
O caminho para o sucesso, doravante, é não
abandonar os esforços de reforma e modernização do Estado e cortes de despesas
obsoletas. Apenas metas otimistas não sustentarão a confiança. Será preciso
trabalhar arduamente.
Xadrez central
Folha de S. Paulo
Novo bloco rearranja forças na Câmara, mas
agenda programática ainda é obscura
É peculiar da política brasileira a
distinção entre o centro, campo de posições moderadas encontradiço em todas as
democracias, e o centrão, que aqui tradicionalmente designa parlamentares e
partidos dispostos a ajudar governos à direita ou à esquerda em troca de cargos
e verbas públicas.
No Brasil, o centro se esvaziou
eleitoralmente nos últimos anos de polarização entre bolsonaristas e petistas.
Já o centrão tomou o controle do Congresso —particularmente com a consolidação
de Arthur Lira (PP-AL) no comando da Câmara dos Deputados— e hoje não faz parte
da base de sustentação ao Palácio do Planalto.
Entretanto as divisas entre centro e
centrão nem sempre são claras, como demonstra um novo movimento no quadro
partidário nacional capaz de afetar as relações entre o governo Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) e o Legislativo.
Cinco legendas —PSD, MDB, Republicanos,
Podemos e PSC— decidiram atuar em bloco na Câmara, tornando-se a
maior força da Casa com 142 dos 513 deputados. O caso mais
surpreendente no grupo é o do Republicanos, que deixou o centrão para
associar-se a duas siglas centristas, PSD e MDB, abrigadas no governo Lula.
De mais imediato, o novo bloco
se torna um contraponto ao poder de Lira, que, eleito com um recorde
de 464 votos dos colegas, hoje se acha no direito de desafiar até as normas
constitucionais da tramitação de medidas provisórias para exercer sua
influência.
Em tese ao menos, a articulação pode
favorecer uma atuação do Republicanos, que tem 42 deputados e apoiou Jair
Bolsonaro (PL) na eleição presidencial, mais moderada ou menos hostil a Lula.
O nome de maior visibilidade do partido
hoje é o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas —que chegou ao posto
com votos bolsonaristas, mas até aqui tem evitado radicalismos ideológicos em
sua administração. Seu secretário de Governo é o ex-prefeito da capital
Gilberto Kassab (PSD), de notória flexibilidade política.
É cedo, claro, para prever os efeitos do
novo quadro partidário da Câmara. O próprio Lira faz seu movimento ao buscar um
entendimento entre o seu PP, ligado no centrão ao PL de Bolsonaro, e a União
Brasil, o mais problemático dos partidos no ministério de Lula.
A melhor hipótese, dependente de boa dose de otimismo, é que fiquem mais claras as orientações programáticas, para além dos interesses fisiológicos imediatos, no xadrez de siglas da política brasileira.
Licença para gastar
O Estado de S. Paulo.
Do que foi revelado, a proposta de âncora
fiscal do governo não tem uma única medida concreta para rever gastos e aposta
em aumento irreal de receitas. Já se sabe onde isso vai dar
O governo de Lula da Silva demorou, mas
apresentou sua proposta de arcabouço fiscal. O mecanismo, segundo o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, vai fixar o crescimento das despesas a 70% do avanço
das receitas. Em paralelo, os gastos terão um piso e um teto, que garantirão a
eles um aumento real de 0,6% a 2,5% acima da inflação. Esse plano, de acordo
com o governo, seria capaz de reduzir o déficit primário a 0,5% do Produto
Interno Bruto (PIB) neste ano, zerá-lo em 2024 e gerar um superávit em 2025 e
2026.
Após a euforia inicial gerada pelo anúncio,
economistas começaram a se ater aos números e detalhes da proposta. A primeira
dúvida diz respeito ao rombo para este ano. Na semana passada, na divulgação do
Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias do primeiro bimestre, o
Ministério da Fazenda havia reduzido a estimativa de déficit primário de R$
228,1 bilhões, o equivalente a 2,1% do PIB, para R$ 107,6 bilhões, ou 1% do
PIB.
O que fez com que o governo cortasse a
projeção do rombo de 1% para 0,5% do PIB passados apenas oito dias permanece
uma incógnita. Tudo indica, no entanto, que essa mudança teria relação com um
outro pacote, ainda a ser apresentado, cujo objetivo é rever parte dos
subsídios e renúncias tributárias e onerar setores que hoje não recolhem
impostos, como o de apostas eletrônicas. Esse plano elevaria a arrecadação
federal em R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões.
Assumir essa projeção de aumento de
receitas como um fato concreto é de um otimismo que beira a ingenuidade,
considerando a articulação que esses grupos de interesse conquistaram no
Congresso. Mas o problema é que esse aspecto resume a essência da proposta do
arcabouço fiscal do governo, que aposta num crescimento irreal de receitas e
não propõe uma única medida concreta para rever os gastos estruturais da União.
Ao contrário: se há algo que esse mecanismo assegura é que as despesas cresçam
ano a ano e sempre acima da inflação, o que é suficiente para colocar em xeque
qualquer previsão de superávit primário.
Há outros detalhes questionáveis a respeito
das bases do novo arcabouço fiscal e que o enfraquecem já de saída. A regra não
atinge os fundos que bancam o piso salarial dos professores e da enfermagem,
bem como mantém os mínimos constitucionais estabelecidos para saúde e educação,
independentemente das reais necessidades das áreas e do recorrente empoçamento
de recursos orçamentários que esses setores registram ano a ano. Da mesma
forma, os investimentos estão fora do escopo da âncora. O patamar atual, de R$
70 bilhões a R$ 75 bilhões, será mantido e corrigido pela inflação mesmo que as
receitas sejam frustradas, mas poderá ser ampliado, de maneira extraordinária,
caso a arrecadação supere as projeções do governo.
Na entrevista em que a proposta foi
detalhada, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, ao defender a
flexibilidade do arcabouço, criticou a rigidez do teto de gastos e as recorrentes
emendas constitucionais aprovadas para alterá-lo. Mas, na ânsia de elaborar
algo exequível, o governo perdeu a mão. Se houver superávit primário no fim do
mandato de Lula, a única forma de atingi-lo sem reformas que revisem os gastos
obrigatórios será pela elevação de uma carga tributária já bastante alta. Do
contrário, essas despesas serão financiadas da mesma forma como têm sido
arcadas nos últimos anos, via endividamento – o que retroalimenta a inflação e
exige o aumento da taxa básica de juros.
A nova regra, segundo Ceron, permitirá ao
governo fazer escolhas. Se é assim, a primeira escolha parece muito clara:
assegurar condições para que todo e qualquer gasto possa ser realizado. Foi
exatamente a prática adotada pela administração de Dilma Rousseff, que levou o
País a uma recessão cujos efeitos ainda não foram completamente superados. A
opção por um Estado eficiente foi mais uma vez descartada. E, se mesmo um
arcabouço frouxo como este foi alvejado pela ala política do governo e por
lideranças e parlamentares petistas, é o caso de o País começar a se preocupar.
Trump no banco dos réus
O Estado de S. Paulo.
O caso prova a integridade da política e da
Justiça. Os políticos precisam se provar capazes de separar o que é da política
e o que é da Justiça. A Justiça precisa se provar apartidária
O Estado Democrático de Direito
norte-americano enfrentará um imenso desafio. Na última terça-feira, pela
primeira vez na história, um ex-presidente dos Estados Unidos foi indiciado por
crime. Entre as quatro investigações penais que correm contra Donald Trump, a
acusação da Procuradoria de Nova York de violação de regras de financiamento
eleitoral é a menos grave. Mas já está sendo conclamada por democratas e
republicanos como uma batalha pela “alma da nação”. A conduta do mundo político
e jurídico pode revitalizar as bases da democracia e da Justiça nos EUA, mas
também pode degradá-las a um ponto inaudito.
O caso está sob sigilo e os detalhes só
virão a público nos próximos dias. Mas sabe-se que a denúncia do procurador de
Manhattan, Alvin Bragg, envolve o pagamento a uma atriz pornô, durante as
eleições de 2016, para que ela mantivesse confidencialidade sobre um
relacionamento que teria tido com Trump. O dinheiro foi pago pelo advogado de
Trump, registrado pela campanha como “despesas legais” e reembolsado pelo
candidato. A expectativa é que a procuradoria acuse Trump por ter doado
dinheiro para a própria campanha sem declará-lo.
Mesmo que seja condenado, as apelações
podem se estender por anos. Enquanto isso, Trump seria elegível. A Justiça não
tem pressa. Mas a política tem. O choque sísmico foi imenso. Trump não só é um
ex-presidente, mas o favorito a vencer as primárias da oposição republicana
para as eleições de 2024.
Trump já tinha antecipado publicamente o
indiciamento e o acoplou – com as alegações de conluio com os russos, dois
impeachments malogrados e a busca e apreensão pelo FBI de documentos secretos
em sua casa – ao seu rol de acusações de “perseguição política”.
Previsivelmente, ele explorará o caso para promover sua narrativa de líder do
povo vitimado pelas elites entranhadas em um deep state corrupto.
Os excessos democratas podem lhe dar de
bandeja a alavanca para resgatar a popularidade com os republicanos que, como
se viu nas últimas eleições, vinha se deteriorando. Para muitos estrategistas
democratas isso seria conveniente. Como sugeriu o Wall Street Journal, “eles
creem que ele seria o candidato mais fácil de vencer porque ele motiva os
democratas e divide os republicanos e independentes”.
Há ampla artilharia para escalar a guerra
cultural: um caso extraconjugal que ecoa os imbróglios de Bill Clinton; um
procurador negro que já foi chamado por Trump de “animal”; e, para piorar, há
um complicador constitutivo do sistema de Justiça americano: os procuradores
são eleitos, e Bragg concorreu pela sigla democrata. O risco de que o caso seja
instalado no centro do debate político arrastando todas as questões de
interesse público para uma batalha campal é imenso.
Será um teste à integridade de republicanos
e democratas. Os primeiros têm o desafio de provar seu compromisso irrestrito
com a lei e a ordem; os segundos, de refrear a tentação de solucionar
divergências políticas por meios penais, que só as agravarão.
A grande responsabilidade recai sobre os
ombros da Justiça. Ninguém está acima da lei. Se há indícios de crime, mesmo um
ex-presidente e candidato à presidência deve responder como qualquer cidadão,
sejam quais forem as repercussões políticas e sociais. Procuradores e juízes
precisam conduzir o caso com técnica e isonomia, sem olhar a capa do processo
nem tergiversar sobre os ritos, aplicando a lei sem leniência, para não deixar
ninguém impune, mas também sem excesso, para não criar mártires.
O precedente será crucial para os outros
casos penais envolvendo Trump – sobre a posse de documentos sigilosos; sobre as
alegações de fraude eleitoral que precederam aos ataques do 6 de Janeiro; e a
acusação de interferir nos resultados eleitorais da Geórgia. A Justiça deve ser
cega. Mas a gritaria em seus ouvidos à direita e à esquerda será ensurdecedora.
Sem dúvida, o procurador de Nova York demonstrou coragem. Será decisivo para os
destinos de seu país que ele se sobressaia ainda mais nas outras virtudes
cardeais: temperança, prudência e, acima de tudo, justiça.
Nem o governo aceita precatórios
O Estado de S. Paulo.
Recusar precatórios como pagamento por concessões de infraestrutura é ampliar insegurança jurídica do País
A operadora espanhola Aena assinou nesta
semana o contrato de concessão do aeroporto de Congonhas. No leilão, realizado
em agosto do ano passado, a empresa arrematou um bloco de 11 terminais por R$
2,45 bilhões. A concessionária deve assumir o comando das atividades em até 15
dias, mas uma mudança de entendimento do governo sobre o uso de precatórios
para o pagamento da outorga tem tudo para conturbar esse processo.
Com ágio de 231% sobre o valor mínimo do
bloco, a Aena fez um lance agressivo para garantir o controle do segundo
aeroporto mais movimentado do País. Metade desse valor seria pago com o uso de
dívidas da União já reconhecidas pelo Judiciário, possibilidade que foi aberta
pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios. Além
de permitir ao governo Jair Bolsonaro dar calote nesses títulos, o texto
garantiu que esses créditos fossem usados em outras situações, entre as quais
quitar a outorga de concessões de infraestrutura.
Como era esperado, a institucionalização do
calote movimentou o já agitado mercado secundário de precatórios. Escritórios
de advocacia, bancos e fundos de investimento ampliaram o assédio às pessoas
físicas, oferecendo aos detentores destes títulos frações de seu valor de face.
A regulamentação do uso ampliado dos precatórios foi publicada em dezembro pela
Advocacia-Geral da União (AGU); três meses depois, sob nova direção, revogou a
portaria, alegando a necessidade de garantir a segurança jurídica da proposta.
Em paralelo, a AGU anunciou a criação de um grupo de trabalho para propor uma
nova regra em 120 dias.
O ministro de Portos e Aeroportos, Márcio
França, disse que era preciso averiguar a liquidez desses pagamentos antes de
aceitá-los para quitar a outorga. “Existem precatórios que venceriam este ano.
Então, equivale a dinheiro. Agora, existem precatórios que são para serem pagos
no ano que vem, no outro ano, no outro ano... A pergunta é: eles devem valer o
mesmo preço, devem ter o mesmo valor?”, questionou. “Se a empresa usar um
dinheiro que estará disponível daqui a três anos, poderia alguém que não
participou da concorrência falar: ‘Se eu soubesse que era assim, eu teria
entrado na concorrência’.”
Se houve lacunas na regulamentação das
condições de uso de precatórios nos leilões, o governo Lula tem toda a
legitimidade para revê-las e aprimorá-las nas licitações futuras. Não deveria,
no entanto, mudar regras que valeram para as disputas realizadas no passado.
Mudanças como esta certamente serão interpretadas como quebra de contrato, vão
conturbar o ambiente de negócios e deverão ampliar a percepção de insegurança
jurídica do País.
Com um orçamento apertado e deficitário, o
Executivo não tem recursos à disposição para dispensar a participação do setor
privado em áreas como a infraestrutura. Mas o pior é o risco reputacional
implícito nessa ideia, que seria cômico se não fosse trágico. Afinal, o que
dizer de um contumaz devedor que se recusa a aceitar como pagamento títulos
emitidos e garantidos por si mesmo?
O governo precisa fazer duas auditorias a da dívida pública e a dos precatórios. Dois mecanismos de assalto.
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